Nélida Piñon extrai do pessoal um saber sobre a humanidade
MARIA ESTHER MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
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As linhas entrecruzadas da palma de uma mão ocupam toda a capa de "Livro das Horas", de Nélida Piñon,
e já prefiguram imageticamente o que o leitor vai encontrar nas páginas do
volume.
Trata-se de um livro de memórias, feito de bifurcações,
entrelaçamentos e desvios, em que relatos memorialísticos se mesclam a
registros do cotidiano, reflexões esparsas sobre a literatura e referências
afetivas a vários autores.
Mas ao contrário do que se espera de uma escritora que sempre
prezou as narrativas densas e labirínticas, ela constrói uma obra porosa,
entrelaçando vários gêneros textuais: a autobiografia, o ensaio, a prosa de
ficção e a poesia. Disso resulta um texto leve mas consistente, no qual a
maturidade da linguagem se alia ao vigor da história de vida que o sustenta.
O olhar de Nélida sobre o passado é lírico e discreto. Nada de revelações
da intimidade própria ou alheia, nada de confidências. Se ela traz à tona fatos
de sua infância, comentários sobre livros de cabeceira, retratos de pessoas da
família e de amigos escritores (Clarice Lispector ocupa algumas páginas), o faz
de forma reservada.
Interessa-lhe, sim, extrair da experiência pessoal um saber sobre
a humanidade e o mundo. Não à toa, diz numa passagem do livro:
"Confidências, elípticas ou poéticas, são de minha alçada."
Essa opção pela discrição talvez possa frustrar os que buscam
detalhes privados da vida da autora ou das pessoas com quem ela conviveu.
Quem vai atrás de dados sobre a vida amorosa de Nélida terá que se
contentar com a singela declaração de amor que ela faz a Gravetinho, o cão que
lhe serve de companhia, descrito como "a alegria dos meus anos
maduros". Ou tentar, em vão, cavar nas entrelinhas e metáforas alguma
pista indiscreta que possa servir como uma revelação.
"Livro das Horas" registra também algumas experiências
coletivas de Nélida, como sua atuação contra a ditadura militar no país, ao
lado de outros intelectuais brasileiros. Pode ser lido, ainda, como um livro de
viagens.
Visitas à Galícia (terra do pai e dos avós maternos), temporadas
no sul de Minas e em Nova York, passeios pelas ruas de Salzsburgo, entre outras
experiências de deslocamento, compõem a cartografia afetiva do livro.
Ao que se somam as idas e vindas temporais do relato, sempre
moduladas pelo ritmo da memória e da imaginação da escritora. O presente
imediato convive o tempo todo com um passado mais ou menos próximo, ou muito
remoto. E, às vezes, o agora do mundo é rejeitado com veemência pela autora,
que deixa clara sua opção: "Pretendo ser arcaica, não fazer parte dos
tempos atuais". O que não deixa de causar incômodo aos que pertencem, por inteiro,
ao século 21. Mas disso ela tem plena consciência.
MARIA ESTHER MACIEL é escritora e
professora da UFMG. Publicou, entre outros, "O Livro dos Nomes"
(Companhia das Letras).
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