sábado, 18 de agosto de 2012



Nélida Piñon extrai do pessoal um saber sobre a humanidade

MARIA ESTHER MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

As linhas entrecruzadas da palma de uma mão ocupam toda a capa de "Livro das Horas", de Nélida Piñon, e já prefiguram imageticamente o que o leitor vai encontrar nas páginas do volume.
Trata-se de um livro de memórias, feito de bifurcações, entrelaçamentos e desvios, em que relatos memorialísticos se mesclam a registros do cotidiano, reflexões esparsas sobre a literatura e referências afetivas a vários autores.
Mas ao contrário do que se espera de uma escritora que sempre prezou as narrativas densas e labirínticas, ela constrói uma obra porosa, entrelaçando vários gêneros textuais: a autobiografia, o ensaio, a prosa de ficção e a poesia. Disso resulta um texto leve mas consistente, no qual a maturidade da linguagem se alia ao vigor da história de vida que o sustenta.
O olhar de Nélida sobre o passado é lírico e discreto. Nada de revelações da intimidade própria ou alheia, nada de confidências. Se ela traz à tona fatos de sua infância, comentários sobre livros de cabeceira, retratos de pessoas da família e de amigos escritores (Clarice Lispector ocupa algumas páginas), o faz de forma reservada.
Interessa-lhe, sim, extrair da experiência pessoal um saber sobre a humanidade e o mundo. Não à toa, diz numa passagem do livro: "Confidências, elípticas ou poéticas, são de minha alçada."
Essa opção pela discrição talvez possa frustrar os que buscam detalhes privados da vida da autora ou das pessoas com quem ela conviveu.
Quem vai atrás de dados sobre a vida amorosa de Nélida terá que se contentar com a singela declaração de amor que ela faz a Gravetinho, o cão que lhe serve de companhia, descrito como "a alegria dos meus anos maduros". Ou tentar, em vão, cavar nas entrelinhas e metáforas alguma pista indiscreta que possa servir como uma revelação.
"Livro das Horas" registra também algumas experiências coletivas de Nélida, como sua atuação contra a ditadura militar no país, ao lado de outros intelectuais brasileiros. Pode ser lido, ainda, como um livro de viagens.
Visitas à Galícia (terra do pai e dos avós maternos), temporadas no sul de Minas e em Nova York, passeios pelas ruas de Salzsburgo, entre outras experiências de deslocamento, compõem a cartografia afetiva do livro.
Ao que se somam as idas e vindas temporais do relato, sempre moduladas pelo ritmo da memória e da imaginação da escritora. O presente imediato convive o tempo todo com um passado mais ou menos próximo, ou muito remoto. E, às vezes, o agora do mundo é rejeitado com veemência pela autora, que deixa clara sua opção: "Pretendo ser arcaica, não fazer parte dos tempos atuais". O que não deixa de causar incômodo aos que pertencem, por inteiro, ao século 21. Mas disso ela tem plena consciência.
MARIA ESTHER MACIEL é escritora e professora da UFMG. Publicou, entre outros, "O Livro dos Nomes" (Companhia das Letras).

Nenhum comentário:

Postar um comentário