domingo, 30 de setembro de 2012

Família

Foto: Sangue do meu sangue.

O cérebro é um músculo e os livros são os halteres.

Foto: O Cérebro é um músculo e os livros são os halteres. 

Por isso leia SEMPRE!!! O seu cérebro agradece :)
Foto: "Ler um livro é importante para você não ser você por um tempo. E, quando você voltar, voltará com os olhos muito mais aguçados"
(Beatriz Bracher- escritora)

Bom diaaaa, um excelente Sábado a todos, recheado de deliciosas leituras e doces surpresas *-*


"Ler um livro é importante para você não ser você por um tempo. E, quando você voltar, voltará com os olhos muito mais aguçados."


(Beatriz Bracher- escritora)
Foto: So much character!

Ornate House in Mykonos, Greece.
Foto: “Mas não tenho mais tanta pressa.
Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu passo.
Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim.
Eu sou a viajante e a viagem."

[Da lindeza da Ana Jácomo]


“Mas não tenho mais tanta pressa.
Comecei a aprender a ser mais gentil com o meu passo.
Afinal, não há lugar algum para chegar além de mim.
Eu sou a viajante e a viagem."

( Ana Jácomo )

Leitura




"Eu, por exemplo, gosto do cheiro dos livros. Gosto de interromper a leitura num trecho especialmente bonito e encostá-lo contra o peito, fechado, enquanto penso no que foi lido. Depois reabro e continuo a viagem. (…) Gosto do barulho das paginas sendo folheadas. Gosto das marcas de velhice que o livro vai ganhando: (…) a lombada descascando, o volume ficando meio ondulado com o manuseio. Tem gente que diz que uma casa sem cortinas é uma casa nua. Eu penso o mesmo de uma casa sem livros.”

(Martha Medeiros  -- escritora)

Chá (ou café/chocolate) + um bom livro = receita infalível para relaxar

Quem lê viaja pelo mundo

domingo, 23 de setembro de 2012

O tempo e o vento: 50 anos


Curiosidade literária



Qual foi a Biblioteca mais importante de todos os tempos??

Antes de mais nada é fundamental salientar que "importância" é um critério bem subjetivo. 
Mas podemos dizer com certeza que a mais importante, não significa a maior Biblioteca, mesmo porque, se fosse esse o critério utilizado, a grande campeã, seria a biblioteca do Congresso Americano, em Washington, nos Estados Unidos.
Ela possui o maior acervo de livros do mundo. São aproximadamente 119 milhões de livros espalhados em mais de 850 quilômetros de prateleiras! 


Indiscutivel que é um lugar muito importante, mas não tem como comparar com aquela que a grande maioria dos historiadores consideram a mais importante Biblioteca de todos os tempos. Também chamada da "mãe" da Bibliotecas atuais, onde se encontravam os maiores cérebros do mundo. E isso em uma era em que raras pessoas sabiam ler ou escrever, e que o conhecimento entre os homens era feito basicamente por relatos orais.
Esse centro do saber era a famosa "Biblioteca de Alexandria" . 

Erguida no século 3 a.C., a biblioteca almejava "abrigar todo o conhecimento produzido pelo homem". Quase chegou lá: o lugar chegou a ter 700 mil textos, uma enormidade para a época. O período de glória dessa biblioteca foi no século 2 a.C. Essa grandiosidade ruiu a partir do século 3, quando o imperador romano Aureliano invadiu Alexandria e, acredita-se, destruiu o lugar. Na época, os nobres egípcios salvaram boa parte dos textos. Mas no ano de 642, o general árabe Amr ibn al-As conquistou a cidade e perguntou a seu soberano, o califa Omar, o que fazer com os livros. O califa disse que o único livro indispensável era o livro de Alá - o Alcorão, obra sagrada dos muçulmanos. Amr, então, distribuiu os livros pelas 4 mil casas de banho de Alexandria para que eles fossem usados como combustível das caldeiras. (vocês imaginem o valor incomensurável do quanto foi perdido por pura ignorancia)


A Biblioteca de Alexandria reunia o supra-sumo do saber na Antiguidade, vamos conhecer um pouco da sua organização. É impressionante:

O CATALOGADOR

A tarefa de ordenar os papiros de Alexandria por temas coube ao poeta grego Calímaco (300-240 a.C.). Usando ordem alfabética para classificar os textos - uma novidade para a época -, Calímaco organizou as obras em oito assuntos: teatro, oratória, poesia lírica, legislação, medicina, história, filosofia e miscelânea

O PÚBLICO

Apenas filósofos, matemáticos e nobres estrangeiros que recebessem a permissão do rei do Egito podiam freqüentar a biblioteca. A situação só mudou quando os romanos conquistaram o país, em 30 a.C. A partir daí, a biblioteca virou instituição pública, aberta a todos

OS PAPIROS

Os "livros" da biblioteca eram os papiros, espécie de papel enrolado em que se escrevia. Cada um deles media 25 centímetros de largura e até 11 metros de comprimento. Calcula-se que a biblioteca começou com 200 papiros. No século 2 a.C., esse número pode ter aumentado para um total de 700 mil papiros

O LUGAR

Provavelmente, a biblioteca ocupava uma área grande no Museu Real de Alexandria - não dá para ter certeza porque o espaço foi destruído no século 3 a.C. Também há poucos detalhes sobre a decoração. Alguns relatos falam sobre uma placa pendurada na entrada do local. Nela estaria escrito "lugar de cura da alma"

OS BIBLIOTECÁRIOS

Além de classificar rolos de papiros, os bibliotecários organizavam textos antigos. Os poemas clássicos Ilíada e Odisséia, atribuídos ao grego Homero e feitos entre os séculos 9 e 8 a.C., foram estruturados na biblioteca nos capítulos que se conhece hoje pelo grego Zenódoto de Êfeso, no século 3 a.C.

AS ESTANTES

Em sua origem grega, um dos significados da palavra biblioteca é "estante". Em Alexandria, as estantes ficavam num longo corredor, em reentrâncias próximas à parede. Em algumas recriações, as prateleiras aparecem em forma de X, o que facilitava o armazenamento e o manuseio dos papiros

OS ESCRIBAS

A profissão deles era copiar manuscritos. Em Alexandria, os escribas tiveram trabalho de sobra. Durante o reinado de Ptolomeu III (246-221 a.C.), um decreto mandava confiscar livros encontrados com estrangeiros. Os escribas reproduziam os manuscritos e só então devolviam os textos a seus donos

O IDEALIZADOR

A biblioteca foi erguida no século 3 a.C. por ordem do general macedônio Ptolomeu I, a quem Alexandre, o Grande, entregou a administração de Alexandria após a conquista do Egito. Sob a dinastia ptolemaica, que durou até o ano 30, a biblioteca tornou-se a maior de toda a Antiguidade

(Ultimo detalhe: Como falei antes essa antiga Biblioteca era frequentada por vários estudiosos e eruditos famosos. Mas quem também a adorava era a jovem princesa Cleópatra que a visitava quase que diariamente. Mesmo quando César ocupou a maior parte da cidade, ela, sua amante e protegida , o fazia acompanhá-la na busca de novas narrativas. O conquistador romano, também um homem de letras, ficara impressionado com a desenvoltura cultural dela ( dentre outros atributos, é lógico). 
Fica a lição: Homem nenhum resiste a uma mulher culta e inteligente.)

Quem abre um livro joga luz na escuridão


(Da página de Carlos Nealdo, jornalista, no Facebook)


O MÚLTIPLO PESSOA 
(Estado de Minas/Correio Braziliense/23.09.2012)

Affonso Romano de Sant’Anna

Quando se pensa que já descobriram tudo sobre Fernando Pessoa, surge alguém e diz: epa! Olha o que achei! E tira do bolso um diamante, como se o Pessoa ou as pessoas dentro do Pessoa fossem uma mina absurdamente inesgotável. Não é de hoje que isto ocorre. É como se todo dia alguém redescobrisse a pólvora ou a América. Esse Pessoa e um verdadeiro pré-sal.
Ainda outro dia o brasileiro José Paulo Calvacanti reinventou a biografia do escritor. Esteve em Portugal pesquisando, pagou gente para ajuda-lo, recolheu documentos, produziu um livro justamente premiado. Também Teresa Rita Lopes fez descobertas e produziu muito sobre Pessoa, até em francês. Dizem que Richard Zenith termina outra biografia do múltiplo pessoa. Minha amiga Cleonice Berardinelli acabou de fazer uma nova antologia sobre Pessoa. E sou do tempo de Casais Monteiro-que conheceu Pessoa e de Jacinto do Prato Coelho que mergulhavam nesse já neste abismo cheio de heterônimos. 
Agora leio que o colombiano Jerônimo Pizzaro fez novas descobertas nas “arcas” e documentos que estão no na Biblioteca Nacioonal de Portugal. São 28 mil papéis, fora os dois mil documentos em posse da família. Vi as fotos de Pizarro, ele com luvas, manipulando piamente os documentos do acervo de Pessoa em Portugal. Esse novo descobridor nos é apresentado na revista “Ler” por Onésimo Almeida, professor em Brown (com quem estive duas vezes na ilha da Madeira). Açoriano convicto Onésimo diz que acompanha Jerônimo desde suas teses sobre Pessoa na Universidade de Harvard . E o pesquisador colombiano se apaixonou tanto pelo escritor português, que o Instituto Camões em Bogotá o abrigou. Antes mexendo nessas arcas infinitas, esse ensaísta havia publicado “A prosa de Alberto de Campos” . E tem algo curioso: gosta de grafar “O livro do desasocego” desse jeito (ao invés de “Desasossego), fazendo um jogo de palavras com cegueira. Atualmente, faz a triangulação Harvard, Bogotá e Lisboa está publicando um livro já intrigante no titulo- “Pessoa existe”?
Certos autores são perigosos. São vampiros. Se apossam da alma dos leitores e dos críticos. O caso de Clarice Lispector em nossa literatura é clássico. A leitor vem andando desprevenido, cai naquele abismo e ( felizmente) não sai nunca mais. Tem gente que se aproxima de Mallarmé, e pronto, passa toda a vida inteira jogando dados com as palavras. Joyce é outro vampiro de almas e destinos. 
Uma vez estive em Dublin. E depois de visitar a Joyce’s Tower (onde ele esquisitamente morou), fui visitar o Trinity College onde ele estudou. E não é que havia ali um congresso, tipo romaria mesmo, de adorares de Joyce reunidos em pia devocão?
Já ouvi de biógrafos a confissão de que foram vampirizados por seus biografados. Rui Castro recompondo as vidas de Garrinha e Nelson Rodrigues, passou por isto. Em minha vida acadêmica e de critico conheci isso de perto.
É uma coisa ambígua, coisa de mártir, fenômeno de simbiose. O indivíduo doa sua vida à vida de outro. E se mete tanto na vida alheia que até se esquece de si. 
Jerônimo Pizarro, no entanto, detaca essa frase de pessoa: ”Sejamos múltiplos, mas senhores de nossa multiplicidade”.

sábado, 8 de setembro de 2012

RUTINHA E BILILIU - Um conto de Arriete Vilela


                                      

                                 RUTINHA E BILILIU

Arriete Vilela


 Se eu fosse um peixinho
                        que soubesse nadar,
                        eu tirava a Rutinha
                       das ondas do mar.
                                     
                     (Do cancioneiro popular)



Rutinha, 5 anos, e Bililiu, 5 anos, moravam numa comunidade de pescadores, e seus casebres ficavam defronte ao mar. Brincavam juntas o dia inteiro. Inventavam situações em que figuravam ora como mães, ora como filhas, ora como donas-de-casa, ora como comadres. Ultimamente, a brincadeira era com caco de coco, que elas enchiam com a areia finíssima e alva da praia, simulando ser farinha de mandioca. Uma menina “vendia” para a outra, e o “pagamento” era feito com conchinhas brancas ou rosadas, que elas catavam à beira-mar.

Rutinha e Bililiu eram amigas tão unidas quanto as próprias mães, e mesmo as avós e as bisavós, nascidas naquele mesmo povoado, e cujas famílias remotavam aos primos Manoel Leocádio e Teodoro da Conceição, que saíram de um povoado a léguas e léguas de distância para aventurar-se por aldeias, grotas, e outros pequenos povoamentos. No meio da viagem, que demorou mais de oito meses, juntaram-se a duas moças, boas parideiras. Os dois casais eram dispostos e divertidos. Quando chegaram àquela praia, resolveram que ficariam ali para sempre.
E desde então, geração após geração, viviam da pesca no mar, para onde os homens iam antes de o sol nascer, numa embarcação tão precária que a volta, a cada finalzinho de tarde, era celebrada com rezas e cantigas: sagrado e profano misturados nas vozes em algazarra das mulheres e das crianças. Na verdade, tudo parecia sempre uma grande festa. Tinham para si o majestoso mar azul, e isso os tornava permanentemente felizes.

           Rutinha e Bililiu repetiam o que as crianças da comunidade vinham fazendo há mais de um século: à beira mar, brincavam com cacos de coco, que elas enchiam com a areia fina e alva da praia, simulando vender farinha. No final da brincadeira, viam-se dois  montinhos  de areia , lado a lado, enfeitados por inúmeras conchinhas coloridas, a moeda do “pagamento”, sobre os quais os pescadores jogavam, de passagem, pequenas estrelas do mar, algas ou minúsculos búzios.
           Um dia, no momento em que Bililiu ia “pagar” a cumbuquinha de “farinha”, ela sentiu uma tão forte dor no peito que a respiração lhe faltou completamente. A conchinha caiu de sua mão e enterrou-se na areia, sob o impacto do corpo de Bililiu, fulminada por um problema congênito no coração e desconhecido pela família. Rutinha estranhou aquele baque da amiguinha; esperou, com a mãozinha estendida, que ela lhe pagasse, mas Bililiu, com o rosto voltado para o céu sem nuvens e os olhos arregalados pela dor fatal, estava dura como uma pedra. Rutinha não compreendia a situação, mas teve o bom senso de chamar, aos gritos, a mãe de Bililiu.   

         Uma semana depois, a mãe da menina morta começou a ter um sonho, que se repetia, parecendo que, a cada noite, se demorava mais, tornava-se mais nítido, fazia-se com mais detalhes. Nele, Bililiu pedia à mãe que pagasse a “farinha” que ela ficara devendo a Rutinha. A pobre mulher, com o coração cheio de dor, conversou com a mãe de Rutinha, e decidiram não tocar nisso com a menina, que chorava a qualquer hora com saudade da amiga.
         Então combinaram que brincariam todas as manhãs com Rutinha, para que, num determinado momento, o “pagamento” pudesse ser feito sem que, necessariamente, houvesse referência à dívida de Bililiu.
Uma manhã, Rutinha viu as duas mulheres enchendo cacos de cocos com a areia fina e alva da praia. Estranhou: brincavam? Ela apenas as observou de longe, com os olhos cheios de lágrimas.
Nas manhãs seguintes, aos pouquinhos, Rutinha foi se chegando. As pessoas da comunidade, quando passavam e viam as duas mulheres, com os afazeres domésticos à espera, brincando com a menina, apenas baixavam a cabeça, em sinal de respeito, e seguiam adiante, sem revelar a menor curiosidade nem demonstrar qualquer estranheza.

Mas os dias foram passando, e a mãe de Bililiu não encontrava, em meio à brincadeira, um modo de pagar a “farinha”, sem que seu gesto parecesse uma quitação óbvia da dívida da filha.
Bililiu voltava ao sonho da mãe e insistia no pagamento. No meio da noite, a mulher acordava sobressaltada e triste. Não conseguia conciliar o sono. Na manhã seguinte, tinha de ficar horas e horas na praia, brincando, sem tempo de cuidar das coisas de casa. Aquela situação começou a lhe parecer uma grande besteira, uma maluquice, uma coisa absolutamente infantil. “Sonho com Bililiu porque sofri muito com a morte dela. Essa história de pagamento deve ser coisa da minha cabeça.”
Começou a irritar-se com Rutinha; não aceitava as conchinhas da menina.
          “Devolva a minha farinha! Esta concha está com a beira quebrada. Não quero mais brincar com você. Só vou brincar agora com a sua mãe. Ouviu, Rutinha? Ouviu?” 
     A menina chorava, e sua mãe ressentia-se com a indelicadeza da amiga.
       “Foi você quem inventou essa história de pagamento.”
      “Eu sei, mas já ando nervosa com essa besteirada.”
       “Então resolva logo e não trate assim a minha filha.”
        “Mas Bililiu não quer que pareça um pagamento.”
 “Então pergunte a ela como é pra fazer.”
        “Mas não dá tempo de conversar no sonho. Ela fala e desaparece.”
        “Não quero saber; se vire. Só não trate Rutinha desse jeito, ouviu?”
        “Tou achando tudo isso uma grande presepada,  sabia?”
  “E eu mais ainda.”

 

   Estranharam-se. Na manhã seguinte, as duas mulheres mal se falaram. Ambas se sentiam ridículas, pra lá e pra cá, ora com cacos de coco cheios de areia fina, ora catando conchinhas coloridas. Rutinha, que já se acostumara com aquelas companhias, antes animadas e brincalhonas, a princípio não notou o mal-estar entre elas. Mas, diante da hostilidade crescente da mãe de Bililiu, a menina passou a esquivar-se, a dizer que não queria mais brincar. Mostrava-se agora indisposta para catar as conchinhas, e quando encontrava alguma realmente bonita, perfeita, escondia-a para não ter que “pagar” com ela a “farinha” da mãe de Bililiu.

    A relação de amizade entre as duas mulheres foi ficando cada vez mais fragilizada. Rutinha já não queria ir brincar na praia, mas como a mãe de Bililiu precisava pagar a dívida para libertar-se do sonho com a filha, sugeriu que a menina fosse sozinha, sem a mãe, porque, assim, talvez surgisse em algum momento a oportunidade de resolver, de uma vez por todas, aquela “pendência”.
          Alguns dias depois, a “dívida” continuava. A mãe de Bililiu percebeu quanto era desabilidosa para resolver uma questão tão besta e aí, aborrecida consigo mesma, começou a mostrar-se intratável, agressiva e intolerante, não só com Rutinha mas também com as pessoas do povoado.

         E então, numa manhã nublada, foi entrando no mar com Rutinha, a pretexto de buscarem lindas conchinhas coloridas. Tomou a menina pela mão e cantou:
            
            
Aviai, andai depressa,
             Vamos à praia brincar,
             Vamos ver a barca nova
             Que do céu caiu no mar.


    “E Bililiu?”    
   “Bililiu está lá adiante...”
                      
             Rema, rema, remador,
             Que essas águas são de flor...      

       “E Bililiu?”
       “Bililiu está lá adiante...”

E Bililiu parecia estar sempre mais adiante, mais adiante, mais adiante.
   
           Rema, rema, remador,
           Que essas águas são de flor...

    Dias depois, o corpo de Rutinha boiava sobre algas azuis enfeitadas de belas conchinhas coloridas.

                                     ****




quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A grande flor - Um conto de Arriete Vilela



              A GRANDE FLOR

                              Arriete Vilela




                          Borboleta pequenina
                          Saia fora do rosal
                          Venha ver bela menina
                          Hoje é noite de Natal.

                                      Do cancioneiro popular




Povoado da Hortelã Miúda. Mesmo cedinho, o sol já aquecia casas e plantas, homens e bichos. Do bule, saía uma fumacinha cheirosa: café coado há pouco.
Biro-Biro nem bem acabava de arear os dentes e lavar o rosto barbado e já estava a pedir à mulher uma caneca de café quente e forte, que ele ia tomando aos goles, pelo meio da casa, enquanto acordava a filharada que se amontoava em dois pequenos cômodos.
A passarinhada já está cantando! Hoje é dia de banho de rio! Quem for preguiçoso não vai apanhar caju!
A meninada gostava tanto de ser acordada desse jeito que, mesmo quando o sol se antecipava ao pai e os despertava, todos fingiam ainda dormir, só pelo prazer de ouvir aquela voz alegre, espalhafatosa, ressoando vigorosa pela pequena casa. Depois se penduravam uns no pescoço do pai, os menorezinhos se abraçavam às pernas dele, e outros se escanchavam nos seus quadris.  
  Ele parecia multiplicar-se em milagres de carinhos. Nunca, em tempo algum, no Povoado da Hortelã Miúda se viu um pai mais amoroso, mais paciente e mais dedicado do que Seu Lourival, conhecido por Biro-Biro desde pequeno, embora nem ele mesmo soubesse explicar a razão do apelido.
Biro-Biro não demonstrava preferência por nenhum dos dez filhos. O mais velho, de doze anos, já se revelava um rapazinho muito responsável; ajudava-o nas pescarias; auxiliava os irmãos menores nas tarefas da escola; era cuidadoso e organizado; mostrava-se sempre conciliador e sensato. Poderia ter sido o predileto do pai, mas não foi.
Na verdade, na verdade, a queridinha do seu coração era Angelina Madalena. Sempre fora tão espertinha que causava admiração nas pessoas. “Cuidado, seu Biro-Biro, criança muito sabida não se cria” – diziam as velhas do povoado. E completavam, como bruxas fatídicas: “E cuidado, hein?, porque  Fulozinha gosta de carregar crianças muito sabidas”.
         
   Fulozinha, Florzinha. No Povoado da Hortelã Miúda, ela era temida, porém não mais do que a caipora, o lobisomem, o homem do saco ou o cachorrinho que arrastava uma corrente amaldiçoada. Ela era tida como uma moça-velha que se havia transformado numa flor exuberante e bela, ora branca, ora vermelha, que, ao tocar a criança com suas pétalas estreitas e longas, atraía-a para dentro de si, como se possuísse ímã, tornando-a prisioneira por dias e dias, para que brincassem e conversassem.
Ninguém nunca viu Fulozinha, e diziam que ela era do bem. Não escondia a criança para judiar dela, mas para ensinar-lhe cantigas e brincadeiras que as pessoas tinham esquecido. Fulozinha só gostava de crianças espertas, porque queria deixar nelas o seu ensinamento.               
 “Tenha cuidado, seu Biro-Biro, essa sua menina é capaz de Fulozinha querer ela...”   
             “ E por que ela não haveria de querer um dos outros?”
             “Ora, seu Biro-Biro, o senhor sabe que essa menina dá de dez a zero nos irmãos.”
O pai desconversava, disfarçava um sorriso de orgulho.

Dentro de um mês, Angelina Madalena completaria quatro anos. A cada aniversário dos filhos, ele e a mulher faziam bolo de macaxeira, doces com as frutas da estação, broa de fubá de milho e refresco de maracujá e de siriguela.
Naquele ano, que fora um dos melhores para a família de Biro-Biro, toda a casa vivia a expectativa da festinha de Angelina Madalena. A mãe cosera roupa nova para todos. Como o aniversário da menina era justo no dia de Natal, o pai fizera um sacrifício danado e comprara um queijo do reino, supremo luxo.

Mas aí, quando faltavam somente dois dias para o aniversário, a menina sumiu misteriosamente. Assim, sem mais nem menos. Quase à vista de todos. Estavam já se acomodando pra dormir, quando o pai, que os fora contar, disse com voz infantil, só por brincadeira, como fazia todas as noites, “Dedo Mindinho, cadê você?”, mas não ouviu o risinho de Angelina Madalena como resposta. Repetiu: “Dedo Mindinho, cadê você?” Nada. Então o homem pareceu ter sido fulminado por um relâmpago: seus pensamentos se atropelavam com a lembrança das falas das pessoas do povoado, e ele imediatamente pensou em Fulozinha. Mas não quis alarmar as crianças. “Durmam, vou ver por onde anda aquela danadinha.” Chamou a mulher, e ambos começaram a procurar a menina. Viraram a noite vasculhando cada pedacinho do sítio e os arredores, aos tropeções, alumiando os atalhos com candeeiros a querosene, cuja chama ora oscilava ora apagava, porque o vento parecia querer dificultar a procura.
Biro-Biro e a mulher voltaram para casa ao amanhecer. Estavam tão exaustos quanto tristes. “A Fulozinha, foi a Fulozinha...” – repetia ele. “Vamos procurar mais, com os meninos”  –  dizia a mulher.
E assim fizeram. Dois dias de buscas. Pai, mãe, irmãos, vizinhos, curiosos. Todos queriam encontrar Angelina Madalena. E nada. Todos já estavam cansadíssimos, desanimados.
Mas então, exatamente na noite de Natal, o milagre: a menos de meia légua do sítio de Biro-Biro, num atalho que dava na direção da Grota da Grande Flor, encontraram a menina sentadinha numa espécie de manjedoura feita de cipó, sobre o buji, cantarolando cantigas de que nem os mais velhos se recordavam.
Biro-Biro chorou feito um menino, recostado ao pé de mulungu. Angelina Madalena abriu os bracinhos e disse: “Minha festa, papai!” Biro-Biro olhou a mulher, e ambos se lembraram de que não tinham feito outra coisa, nos últimos dois dias, senão procurar a menina e, que, portanto, não havia bolo nem broa. Mas havia o queijo do reino, e eles o foram buscar e o serviram em fatias grossas com pão e bolacha. Depois tomaram refresco de maracujá.

Todos os anos, o aniversário de Angelina Madalena era comemorado na Grota da Grande Flor. Ninguém via Fulozinha, mas todos sabiam que ela e a menina eram grandes amigas.

Quando Biro-Biro morreu, Angelina Madalena, que já estava com 30 anos, passou a reunir a família e algumas pessoas, e todos rezavam diante do presépio montado na sala da casa. A um canto, enfeitando a noite, ficava uma bela e misteriosa flor, trazida da Grota e levada de volta no dia seguinte pela própria Angelina.

Angelina Madalena nunca se casou. As crianças iam amiudemente a sua casa, faziam uma roda animada, ouviam histórias e mais histórias ou cantavam antigas canções populares, perpetuando, assim, as lendas, os medos e os mitos do Povoado da Hortelã Miúda.
 
No meio da sala, dizem, ficava a exuberante Grande Flor, levada definitivamente para a casa de Angelina Madalena.

                                                                  ****



                                                                   







As irmãs Lispector: Tânia, Elisa e Clarice


Escritoras: Anilda Leão e Arriete Vilela