quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A grande flor - Um conto de Arriete Vilela



              A GRANDE FLOR

                              Arriete Vilela




                          Borboleta pequenina
                          Saia fora do rosal
                          Venha ver bela menina
                          Hoje é noite de Natal.

                                      Do cancioneiro popular




Povoado da Hortelã Miúda. Mesmo cedinho, o sol já aquecia casas e plantas, homens e bichos. Do bule, saía uma fumacinha cheirosa: café coado há pouco.
Biro-Biro nem bem acabava de arear os dentes e lavar o rosto barbado e já estava a pedir à mulher uma caneca de café quente e forte, que ele ia tomando aos goles, pelo meio da casa, enquanto acordava a filharada que se amontoava em dois pequenos cômodos.
A passarinhada já está cantando! Hoje é dia de banho de rio! Quem for preguiçoso não vai apanhar caju!
A meninada gostava tanto de ser acordada desse jeito que, mesmo quando o sol se antecipava ao pai e os despertava, todos fingiam ainda dormir, só pelo prazer de ouvir aquela voz alegre, espalhafatosa, ressoando vigorosa pela pequena casa. Depois se penduravam uns no pescoço do pai, os menorezinhos se abraçavam às pernas dele, e outros se escanchavam nos seus quadris.  
  Ele parecia multiplicar-se em milagres de carinhos. Nunca, em tempo algum, no Povoado da Hortelã Miúda se viu um pai mais amoroso, mais paciente e mais dedicado do que Seu Lourival, conhecido por Biro-Biro desde pequeno, embora nem ele mesmo soubesse explicar a razão do apelido.
Biro-Biro não demonstrava preferência por nenhum dos dez filhos. O mais velho, de doze anos, já se revelava um rapazinho muito responsável; ajudava-o nas pescarias; auxiliava os irmãos menores nas tarefas da escola; era cuidadoso e organizado; mostrava-se sempre conciliador e sensato. Poderia ter sido o predileto do pai, mas não foi.
Na verdade, na verdade, a queridinha do seu coração era Angelina Madalena. Sempre fora tão espertinha que causava admiração nas pessoas. “Cuidado, seu Biro-Biro, criança muito sabida não se cria” – diziam as velhas do povoado. E completavam, como bruxas fatídicas: “E cuidado, hein?, porque  Fulozinha gosta de carregar crianças muito sabidas”.
         
   Fulozinha, Florzinha. No Povoado da Hortelã Miúda, ela era temida, porém não mais do que a caipora, o lobisomem, o homem do saco ou o cachorrinho que arrastava uma corrente amaldiçoada. Ela era tida como uma moça-velha que se havia transformado numa flor exuberante e bela, ora branca, ora vermelha, que, ao tocar a criança com suas pétalas estreitas e longas, atraía-a para dentro de si, como se possuísse ímã, tornando-a prisioneira por dias e dias, para que brincassem e conversassem.
Ninguém nunca viu Fulozinha, e diziam que ela era do bem. Não escondia a criança para judiar dela, mas para ensinar-lhe cantigas e brincadeiras que as pessoas tinham esquecido. Fulozinha só gostava de crianças espertas, porque queria deixar nelas o seu ensinamento.               
 “Tenha cuidado, seu Biro-Biro, essa sua menina é capaz de Fulozinha querer ela...”   
             “ E por que ela não haveria de querer um dos outros?”
             “Ora, seu Biro-Biro, o senhor sabe que essa menina dá de dez a zero nos irmãos.”
O pai desconversava, disfarçava um sorriso de orgulho.

Dentro de um mês, Angelina Madalena completaria quatro anos. A cada aniversário dos filhos, ele e a mulher faziam bolo de macaxeira, doces com as frutas da estação, broa de fubá de milho e refresco de maracujá e de siriguela.
Naquele ano, que fora um dos melhores para a família de Biro-Biro, toda a casa vivia a expectativa da festinha de Angelina Madalena. A mãe cosera roupa nova para todos. Como o aniversário da menina era justo no dia de Natal, o pai fizera um sacrifício danado e comprara um queijo do reino, supremo luxo.

Mas aí, quando faltavam somente dois dias para o aniversário, a menina sumiu misteriosamente. Assim, sem mais nem menos. Quase à vista de todos. Estavam já se acomodando pra dormir, quando o pai, que os fora contar, disse com voz infantil, só por brincadeira, como fazia todas as noites, “Dedo Mindinho, cadê você?”, mas não ouviu o risinho de Angelina Madalena como resposta. Repetiu: “Dedo Mindinho, cadê você?” Nada. Então o homem pareceu ter sido fulminado por um relâmpago: seus pensamentos se atropelavam com a lembrança das falas das pessoas do povoado, e ele imediatamente pensou em Fulozinha. Mas não quis alarmar as crianças. “Durmam, vou ver por onde anda aquela danadinha.” Chamou a mulher, e ambos começaram a procurar a menina. Viraram a noite vasculhando cada pedacinho do sítio e os arredores, aos tropeções, alumiando os atalhos com candeeiros a querosene, cuja chama ora oscilava ora apagava, porque o vento parecia querer dificultar a procura.
Biro-Biro e a mulher voltaram para casa ao amanhecer. Estavam tão exaustos quanto tristes. “A Fulozinha, foi a Fulozinha...” – repetia ele. “Vamos procurar mais, com os meninos”  –  dizia a mulher.
E assim fizeram. Dois dias de buscas. Pai, mãe, irmãos, vizinhos, curiosos. Todos queriam encontrar Angelina Madalena. E nada. Todos já estavam cansadíssimos, desanimados.
Mas então, exatamente na noite de Natal, o milagre: a menos de meia légua do sítio de Biro-Biro, num atalho que dava na direção da Grota da Grande Flor, encontraram a menina sentadinha numa espécie de manjedoura feita de cipó, sobre o buji, cantarolando cantigas de que nem os mais velhos se recordavam.
Biro-Biro chorou feito um menino, recostado ao pé de mulungu. Angelina Madalena abriu os bracinhos e disse: “Minha festa, papai!” Biro-Biro olhou a mulher, e ambos se lembraram de que não tinham feito outra coisa, nos últimos dois dias, senão procurar a menina e, que, portanto, não havia bolo nem broa. Mas havia o queijo do reino, e eles o foram buscar e o serviram em fatias grossas com pão e bolacha. Depois tomaram refresco de maracujá.

Todos os anos, o aniversário de Angelina Madalena era comemorado na Grota da Grande Flor. Ninguém via Fulozinha, mas todos sabiam que ela e a menina eram grandes amigas.

Quando Biro-Biro morreu, Angelina Madalena, que já estava com 30 anos, passou a reunir a família e algumas pessoas, e todos rezavam diante do presépio montado na sala da casa. A um canto, enfeitando a noite, ficava uma bela e misteriosa flor, trazida da Grota e levada de volta no dia seguinte pela própria Angelina.

Angelina Madalena nunca se casou. As crianças iam amiudemente a sua casa, faziam uma roda animada, ouviam histórias e mais histórias ou cantavam antigas canções populares, perpetuando, assim, as lendas, os medos e os mitos do Povoado da Hortelã Miúda.
 
No meio da sala, dizem, ficava a exuberante Grande Flor, levada definitivamente para a casa de Angelina Madalena.

                                                                  ****



                                                                   







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