A GRANDE FLOR
Arriete Vilela
Borboleta pequenina
Saia fora do rosal
Venha ver bela menina
Hoje é noite de Natal.
Do
cancioneiro popular
Povoado da
Hortelã Miúda. Mesmo cedinho, o sol já aquecia casas e plantas, homens e bichos.
Do bule, saía uma fumacinha cheirosa: café coado há pouco.
Biro-Biro
nem bem acabava de arear os dentes e lavar o rosto barbado e já estava a pedir
à mulher uma caneca de café quente e forte, que ele ia tomando aos goles, pelo
meio da casa, enquanto acordava a filharada que se amontoava em dois pequenos
cômodos.
– A passarinhada já está cantando! Hoje é dia
de banho de rio! Quem for preguiçoso não vai apanhar caju!
A meninada
gostava tanto de ser acordada desse jeito que, mesmo quando o sol se antecipava
ao pai e os despertava, todos fingiam ainda dormir, só pelo prazer de ouvir
aquela voz alegre, espalhafatosa, ressoando vigorosa pela pequena casa. Depois
se penduravam uns no pescoço do pai, os menorezinhos se abraçavam às pernas
dele, e outros se escanchavam nos seus quadris.
Ele parecia multiplicar-se em milagres de
carinhos. Nunca, em tempo algum, no Povoado da Hortelã Miúda se viu um pai mais
amoroso, mais paciente e mais dedicado do que Seu Lourival, conhecido por
Biro-Biro desde pequeno, embora nem ele mesmo soubesse explicar a razão do
apelido.
Biro-Biro
não demonstrava preferência por nenhum dos dez filhos. O mais velho, de doze
anos, já se revelava um rapazinho muito responsável; ajudava-o nas pescarias;
auxiliava os irmãos menores nas tarefas da escola; era cuidadoso e organizado;
mostrava-se sempre conciliador e sensato. Poderia ter sido o predileto do pai,
mas não foi.
Na verdade,
na verdade, a queridinha do seu coração era Angelina Madalena. Sempre fora tão
espertinha que causava admiração nas pessoas. “Cuidado, seu Biro-Biro, criança muito sabida não se cria” – diziam
as velhas do povoado. E completavam, como bruxas fatídicas: “E cuidado, hein?, porque Fulozinha gosta de carregar crianças muito
sabidas”.
Fulozinha,
Florzinha. No Povoado da Hortelã Miúda, ela era temida, porém não mais do que a
caipora, o lobisomem, o homem do saco ou o cachorrinho que arrastava uma
corrente amaldiçoada. Ela era tida como uma moça-velha que se havia
transformado numa flor exuberante e bela, ora branca, ora vermelha, que, ao
tocar a criança com suas pétalas estreitas e longas, atraía-a para dentro de
si, como se possuísse ímã, tornando-a prisioneira por dias e dias, para que
brincassem e conversassem.
Ninguém
nunca viu Fulozinha, e diziam que ela era do bem. Não escondia a criança para
judiar dela, mas para ensinar-lhe cantigas e brincadeiras que as pessoas tinham
esquecido. Fulozinha só gostava de crianças espertas, porque queria deixar
nelas o seu ensinamento.
“Tenha cuidado,
seu Biro-Biro, essa sua menina é capaz de Fulozinha querer ela...”
“ E por que ela
não haveria de querer um dos outros?”
“Ora, seu Biro-Biro, o senhor sabe que essa
menina dá de dez a zero nos irmãos.”
O pai
desconversava, disfarçava um sorriso de orgulho.
Dentro de
um mês, Angelina Madalena completaria quatro anos. A cada aniversário dos
filhos, ele e a mulher faziam bolo de macaxeira, doces com as frutas da
estação, broa de fubá de milho e refresco de maracujá e de siriguela.
Naquele
ano, que fora um dos melhores para a família de Biro-Biro, toda a casa vivia a
expectativa da festinha de Angelina Madalena. A mãe cosera roupa nova para
todos. Como o aniversário da menina era justo no dia de Natal, o pai fizera um
sacrifício danado e comprara um queijo do reino, supremo luxo.
Mas aí,
quando faltavam somente dois dias para o aniversário, a menina sumiu
misteriosamente. Assim, sem mais nem menos. Quase à vista de todos. Estavam já
se acomodando pra dormir, quando o pai, que os fora contar, disse com voz
infantil, só por brincadeira, como fazia todas as noites, “Dedo Mindinho, cadê você?”, mas não ouviu o risinho de Angelina
Madalena como resposta. Repetiu: “Dedo
Mindinho, cadê você?” Nada. Então o homem pareceu ter sido fulminado por um
relâmpago: seus pensamentos se atropelavam com a lembrança das falas das
pessoas do povoado, e ele imediatamente pensou em Fulozinha. Mas não quis alarmar as crianças. “Durmam, vou ver por onde anda aquela danadinha.” Chamou a mulher, e
ambos começaram a procurar a menina. Viraram a noite vasculhando cada pedacinho
do sítio e os arredores, aos tropeções, alumiando os atalhos com candeeiros a
querosene, cuja chama ora oscilava ora apagava, porque o vento parecia querer
dificultar a procura.
Biro-Biro e
a mulher voltaram para casa ao amanhecer. Estavam tão exaustos quanto tristes. “A Fulozinha, foi a Fulozinha...” –
repetia ele. “Vamos procurar mais, com os
meninos” – dizia a mulher.
E assim
fizeram. Dois dias de buscas. Pai, mãe, irmãos, vizinhos, curiosos. Todos
queriam encontrar Angelina Madalena. E nada. Todos já estavam cansadíssimos,
desanimados.
Mas então,
exatamente na noite de Natal, o milagre: a menos de meia légua do sítio de
Biro-Biro, num atalho que dava na direção da Grota da Grande Flor, encontraram
a menina sentadinha numa espécie de manjedoura feita de cipó, sobre o buji,
cantarolando cantigas de que nem os mais velhos se recordavam.
Biro-Biro
chorou feito um menino, recostado ao pé de mulungu. Angelina Madalena abriu os
bracinhos e disse: “Minha festa, papai!”
Biro-Biro olhou a mulher, e ambos se lembraram de que não tinham feito outra
coisa, nos últimos dois dias, senão procurar a menina e, que, portanto, não
havia bolo nem broa. Mas havia o queijo do reino, e eles o foram buscar e o
serviram em fatias grossas com pão e bolacha. Depois tomaram refresco de
maracujá.
Todos os
anos, o aniversário de Angelina Madalena era comemorado na Grota da Grande
Flor. Ninguém via Fulozinha, mas todos sabiam que ela e a menina eram grandes
amigas.
Quando
Biro-Biro morreu, Angelina Madalena, que já estava com 30 anos, passou a reunir
a família e algumas pessoas, e todos rezavam diante do presépio montado na sala
da casa. A um canto, enfeitando a noite, ficava uma bela e misteriosa flor,
trazida da Grota e levada de volta no dia seguinte pela própria Angelina.
Angelina
Madalena nunca se casou. As crianças iam amiudemente a sua casa, faziam uma
roda animada, ouviam histórias e mais histórias ou cantavam antigas canções
populares, perpetuando, assim, as lendas, os medos e os mitos do Povoado da
Hortelã Miúda.
No meio da
sala, dizem, ficava a exuberante Grande Flor, levada definitivamente para a
casa de Angelina Madalena.
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