RUTINHA E BILILIU
Arriete Vilela
Se
eu fosse um peixinho
que
soubesse nadar,
eu tirava
a Rutinha
das ondas
do mar.
(Do
cancioneiro popular)
Rutinha, 5
anos, e Bililiu, 5 anos, moravam numa comunidade de pescadores, e seus casebres
ficavam defronte ao mar. Brincavam juntas o dia inteiro. Inventavam situações
em que figuravam ora como mães, ora como filhas, ora como donas-de-casa, ora
como comadres. Ultimamente, a brincadeira era com caco de coco, que elas
enchiam com a areia finíssima e alva da praia, simulando ser farinha de
mandioca. Uma menina “vendia” para a outra, e o “pagamento” era feito com
conchinhas brancas ou rosadas, que elas catavam à beira-mar.
Rutinha e
Bililiu eram amigas tão unidas quanto as próprias mães, e mesmo as avós e as
bisavós, nascidas naquele mesmo povoado, e cujas famílias remotavam aos primos
Manoel Leocádio e Teodoro da Conceição, que saíram de um povoado a léguas e
léguas de distância para aventurar-se por aldeias, grotas, e outros pequenos
povoamentos. No meio da viagem, que demorou mais de oito meses, juntaram-se a
duas moças, boas parideiras. Os dois casais eram dispostos e divertidos. Quando
chegaram àquela praia, resolveram que ficariam ali para sempre.
E desde
então, geração após geração, viviam da pesca no mar, para onde os homens iam
antes de o sol nascer, numa embarcação tão precária que a volta, a cada
finalzinho de tarde, era celebrada com rezas e cantigas: sagrado e profano
misturados nas vozes em algazarra das mulheres e das crianças. Na verdade, tudo
parecia sempre uma grande festa. Tinham para si o majestoso mar azul, e isso os
tornava permanentemente felizes.
Rutinha e Bililiu repetiam o que as
crianças da comunidade vinham fazendo há mais de um século: à beira mar,
brincavam com cacos de coco, que elas enchiam com a areia fina e alva da praia,
simulando vender farinha. No final da brincadeira, viam-se dois montinhos
de areia , lado a lado, enfeitados por inúmeras conchinhas coloridas, a
moeda do “pagamento”, sobre os quais os pescadores jogavam, de passagem,
pequenas estrelas do mar, algas ou minúsculos búzios.
Um dia, no momento em que Bililiu ia “pagar” a cumbuquinha de “farinha”, ela sentiu uma
tão forte dor no peito que a respiração lhe faltou completamente. A conchinha
caiu de sua mão e enterrou-se na areia, sob o impacto do corpo de Bililiu,
fulminada por um problema congênito no coração e desconhecido pela família.
Rutinha estranhou aquele baque da amiguinha; esperou, com a mãozinha estendida,
que ela lhe pagasse, mas Bililiu, com o rosto voltado para o céu sem nuvens e
os olhos arregalados pela dor fatal, estava dura como uma pedra. Rutinha não
compreendia a situação, mas teve o bom senso de chamar, aos gritos, a mãe de
Bililiu.
Uma semana depois, a
mãe da menina morta começou a ter um sonho, que se repetia, parecendo que, a
cada noite, se demorava mais, tornava-se mais nítido, fazia-se com mais
detalhes. Nele, Bililiu pedia à mãe que pagasse a “farinha” que ela ficara
devendo a Rutinha. A pobre mulher, com o coração cheio de dor, conversou com a
mãe de Rutinha, e decidiram não tocar nisso com a menina, que chorava a
qualquer hora com saudade da amiga.
Então combinaram que
brincariam todas as manhãs com Rutinha, para que, num determinado momento, o
“pagamento” pudesse ser feito sem que, necessariamente, houvesse referência à
dívida de Bililiu.
Uma manhã,
Rutinha viu as duas mulheres enchendo cacos de cocos com a areia fina e alva da
praia. Estranhou: brincavam? Ela apenas as observou de longe, com os olhos
cheios de lágrimas.
Nas manhãs
seguintes, aos pouquinhos, Rutinha foi se chegando. As pessoas da comunidade,
quando passavam e viam as duas mulheres, com os afazeres domésticos à espera,
brincando com a menina, apenas baixavam a cabeça, em sinal de respeito, e
seguiam adiante, sem revelar a menor curiosidade nem demonstrar qualquer
estranheza.
Mas os dias
foram passando, e a mãe de Bililiu não encontrava, em meio à brincadeira, um
modo de pagar a “farinha”, sem que seu gesto parecesse uma quitação óbvia da
dívida da filha.
Bililiu
voltava ao sonho da mãe e insistia no pagamento. No meio da noite, a mulher
acordava sobressaltada e triste. Não conseguia conciliar o sono. Na manhã
seguinte, tinha de ficar horas e horas na praia, brincando, sem tempo de cuidar
das coisas de casa. Aquela situação começou a lhe parecer uma grande besteira,
uma maluquice, uma coisa absolutamente infantil. “Sonho com Bililiu porque sofri muito com a morte dela. Essa história de
pagamento deve ser coisa da minha cabeça.”
Começou a
irritar-se com Rutinha; não aceitava as conchinhas da menina.
“Devolva
a minha farinha! Esta concha está com a beira quebrada. Não quero mais brincar
com você. Só vou brincar agora com a sua mãe. Ouviu, Rutinha? Ouviu?”
A menina chorava, e sua mãe ressentia-se com a
indelicadeza da amiga.
“Foi você quem inventou essa história de
pagamento.”
“Eu sei,
mas já ando nervosa com essa besteirada.”
“Então
resolva logo e não trate assim a minha filha.”
“Mas
Bililiu não quer que pareça um pagamento.”
“Então
pergunte a ela como é pra fazer.”
“Mas
não dá tempo de conversar no sonho. Ela fala e desaparece.”
“Não
quero saber; se vire. Só não trate Rutinha desse jeito, ouviu?”
“Tou achando tudo isso uma grande
presepada, sabia?”
“E eu mais ainda.”
Estranharam-se. Na manhã
seguinte, as duas mulheres mal se falaram. Ambas se sentiam ridículas, pra lá e
pra cá, ora com cacos de coco cheios de areia fina, ora catando conchinhas
coloridas. Rutinha, que já se acostumara com aquelas companhias, antes animadas
e brincalhonas, a princípio não notou o mal-estar entre elas. Mas, diante da
hostilidade crescente da mãe de Bililiu, a menina passou a esquivar-se, a dizer
que não queria mais brincar. Mostrava-se agora indisposta para catar as
conchinhas, e quando encontrava alguma realmente bonita, perfeita, escondia-a
para não ter que “pagar” com ela a “farinha” da mãe de Bililiu.
A relação de amizade entre as duas mulheres
foi ficando cada vez mais fragilizada. Rutinha já não queria ir brincar na
praia, mas como a mãe de Bililiu precisava pagar a dívida para libertar-se do
sonho com a filha, sugeriu que a menina fosse sozinha, sem a mãe, porque,
assim, talvez surgisse em algum momento a oportunidade de resolver, de uma vez
por todas, aquela “pendência”.
Alguns dias depois, a
“dívida” continuava. A mãe de Bililiu percebeu quanto era desabilidosa para
resolver uma questão tão besta e aí, aborrecida consigo mesma, começou a
mostrar-se intratável, agressiva e intolerante, não só com Rutinha mas também
com as pessoas do povoado.
E então, numa manhã nublada, foi
entrando no mar com Rutinha, a pretexto de buscarem lindas conchinhas
coloridas. Tomou a menina pela mão e cantou:
Aviai,
andai depressa,
Vamos à praia brincar,
Vamos ver a barca nova
Que do céu caiu no mar.
“E Bililiu?”
“Bililiu
está lá adiante...”
Rema, rema, remador,
Que essas águas são de flor...
“E Bililiu?”
“Bililiu está lá adiante...”
E Bililiu
parecia estar sempre mais adiante, mais adiante, mais adiante.
Rema, rema, remador,
Que essas águas são de flor...
Dias depois, o corpo de Rutinha boiava
sobre algas azuis enfeitadas de belas conchinhas coloridas.
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