sábado, 8 de setembro de 2012

RUTINHA E BILILIU - Um conto de Arriete Vilela


                                      

                                 RUTINHA E BILILIU

Arriete Vilela


 Se eu fosse um peixinho
                        que soubesse nadar,
                        eu tirava a Rutinha
                       das ondas do mar.
                                     
                     (Do cancioneiro popular)



Rutinha, 5 anos, e Bililiu, 5 anos, moravam numa comunidade de pescadores, e seus casebres ficavam defronte ao mar. Brincavam juntas o dia inteiro. Inventavam situações em que figuravam ora como mães, ora como filhas, ora como donas-de-casa, ora como comadres. Ultimamente, a brincadeira era com caco de coco, que elas enchiam com a areia finíssima e alva da praia, simulando ser farinha de mandioca. Uma menina “vendia” para a outra, e o “pagamento” era feito com conchinhas brancas ou rosadas, que elas catavam à beira-mar.

Rutinha e Bililiu eram amigas tão unidas quanto as próprias mães, e mesmo as avós e as bisavós, nascidas naquele mesmo povoado, e cujas famílias remotavam aos primos Manoel Leocádio e Teodoro da Conceição, que saíram de um povoado a léguas e léguas de distância para aventurar-se por aldeias, grotas, e outros pequenos povoamentos. No meio da viagem, que demorou mais de oito meses, juntaram-se a duas moças, boas parideiras. Os dois casais eram dispostos e divertidos. Quando chegaram àquela praia, resolveram que ficariam ali para sempre.
E desde então, geração após geração, viviam da pesca no mar, para onde os homens iam antes de o sol nascer, numa embarcação tão precária que a volta, a cada finalzinho de tarde, era celebrada com rezas e cantigas: sagrado e profano misturados nas vozes em algazarra das mulheres e das crianças. Na verdade, tudo parecia sempre uma grande festa. Tinham para si o majestoso mar azul, e isso os tornava permanentemente felizes.

           Rutinha e Bililiu repetiam o que as crianças da comunidade vinham fazendo há mais de um século: à beira mar, brincavam com cacos de coco, que elas enchiam com a areia fina e alva da praia, simulando vender farinha. No final da brincadeira, viam-se dois  montinhos  de areia , lado a lado, enfeitados por inúmeras conchinhas coloridas, a moeda do “pagamento”, sobre os quais os pescadores jogavam, de passagem, pequenas estrelas do mar, algas ou minúsculos búzios.
           Um dia, no momento em que Bililiu ia “pagar” a cumbuquinha de “farinha”, ela sentiu uma tão forte dor no peito que a respiração lhe faltou completamente. A conchinha caiu de sua mão e enterrou-se na areia, sob o impacto do corpo de Bililiu, fulminada por um problema congênito no coração e desconhecido pela família. Rutinha estranhou aquele baque da amiguinha; esperou, com a mãozinha estendida, que ela lhe pagasse, mas Bililiu, com o rosto voltado para o céu sem nuvens e os olhos arregalados pela dor fatal, estava dura como uma pedra. Rutinha não compreendia a situação, mas teve o bom senso de chamar, aos gritos, a mãe de Bililiu.   

         Uma semana depois, a mãe da menina morta começou a ter um sonho, que se repetia, parecendo que, a cada noite, se demorava mais, tornava-se mais nítido, fazia-se com mais detalhes. Nele, Bililiu pedia à mãe que pagasse a “farinha” que ela ficara devendo a Rutinha. A pobre mulher, com o coração cheio de dor, conversou com a mãe de Rutinha, e decidiram não tocar nisso com a menina, que chorava a qualquer hora com saudade da amiga.
         Então combinaram que brincariam todas as manhãs com Rutinha, para que, num determinado momento, o “pagamento” pudesse ser feito sem que, necessariamente, houvesse referência à dívida de Bililiu.
Uma manhã, Rutinha viu as duas mulheres enchendo cacos de cocos com a areia fina e alva da praia. Estranhou: brincavam? Ela apenas as observou de longe, com os olhos cheios de lágrimas.
Nas manhãs seguintes, aos pouquinhos, Rutinha foi se chegando. As pessoas da comunidade, quando passavam e viam as duas mulheres, com os afazeres domésticos à espera, brincando com a menina, apenas baixavam a cabeça, em sinal de respeito, e seguiam adiante, sem revelar a menor curiosidade nem demonstrar qualquer estranheza.

Mas os dias foram passando, e a mãe de Bililiu não encontrava, em meio à brincadeira, um modo de pagar a “farinha”, sem que seu gesto parecesse uma quitação óbvia da dívida da filha.
Bililiu voltava ao sonho da mãe e insistia no pagamento. No meio da noite, a mulher acordava sobressaltada e triste. Não conseguia conciliar o sono. Na manhã seguinte, tinha de ficar horas e horas na praia, brincando, sem tempo de cuidar das coisas de casa. Aquela situação começou a lhe parecer uma grande besteira, uma maluquice, uma coisa absolutamente infantil. “Sonho com Bililiu porque sofri muito com a morte dela. Essa história de pagamento deve ser coisa da minha cabeça.”
Começou a irritar-se com Rutinha; não aceitava as conchinhas da menina.
          “Devolva a minha farinha! Esta concha está com a beira quebrada. Não quero mais brincar com você. Só vou brincar agora com a sua mãe. Ouviu, Rutinha? Ouviu?” 
     A menina chorava, e sua mãe ressentia-se com a indelicadeza da amiga.
       “Foi você quem inventou essa história de pagamento.”
      “Eu sei, mas já ando nervosa com essa besteirada.”
       “Então resolva logo e não trate assim a minha filha.”
        “Mas Bililiu não quer que pareça um pagamento.”
 “Então pergunte a ela como é pra fazer.”
        “Mas não dá tempo de conversar no sonho. Ela fala e desaparece.”
        “Não quero saber; se vire. Só não trate Rutinha desse jeito, ouviu?”
        “Tou achando tudo isso uma grande presepada,  sabia?”
  “E eu mais ainda.”

 

   Estranharam-se. Na manhã seguinte, as duas mulheres mal se falaram. Ambas se sentiam ridículas, pra lá e pra cá, ora com cacos de coco cheios de areia fina, ora catando conchinhas coloridas. Rutinha, que já se acostumara com aquelas companhias, antes animadas e brincalhonas, a princípio não notou o mal-estar entre elas. Mas, diante da hostilidade crescente da mãe de Bililiu, a menina passou a esquivar-se, a dizer que não queria mais brincar. Mostrava-se agora indisposta para catar as conchinhas, e quando encontrava alguma realmente bonita, perfeita, escondia-a para não ter que “pagar” com ela a “farinha” da mãe de Bililiu.

    A relação de amizade entre as duas mulheres foi ficando cada vez mais fragilizada. Rutinha já não queria ir brincar na praia, mas como a mãe de Bililiu precisava pagar a dívida para libertar-se do sonho com a filha, sugeriu que a menina fosse sozinha, sem a mãe, porque, assim, talvez surgisse em algum momento a oportunidade de resolver, de uma vez por todas, aquela “pendência”.
          Alguns dias depois, a “dívida” continuava. A mãe de Bililiu percebeu quanto era desabilidosa para resolver uma questão tão besta e aí, aborrecida consigo mesma, começou a mostrar-se intratável, agressiva e intolerante, não só com Rutinha mas também com as pessoas do povoado.

         E então, numa manhã nublada, foi entrando no mar com Rutinha, a pretexto de buscarem lindas conchinhas coloridas. Tomou a menina pela mão e cantou:
            
            
Aviai, andai depressa,
             Vamos à praia brincar,
             Vamos ver a barca nova
             Que do céu caiu no mar.


    “E Bililiu?”    
   “Bililiu está lá adiante...”
                      
             Rema, rema, remador,
             Que essas águas são de flor...      

       “E Bililiu?”
       “Bililiu está lá adiante...”

E Bililiu parecia estar sempre mais adiante, mais adiante, mais adiante.
   
           Rema, rema, remador,
           Que essas águas são de flor...

    Dias depois, o corpo de Rutinha boiava sobre algas azuis enfeitadas de belas conchinhas coloridas.

                                     ****




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