domingo, 23 de setembro de 2012



O MÚLTIPLO PESSOA 
(Estado de Minas/Correio Braziliense/23.09.2012)

Affonso Romano de Sant’Anna

Quando se pensa que já descobriram tudo sobre Fernando Pessoa, surge alguém e diz: epa! Olha o que achei! E tira do bolso um diamante, como se o Pessoa ou as pessoas dentro do Pessoa fossem uma mina absurdamente inesgotável. Não é de hoje que isto ocorre. É como se todo dia alguém redescobrisse a pólvora ou a América. Esse Pessoa e um verdadeiro pré-sal.
Ainda outro dia o brasileiro José Paulo Calvacanti reinventou a biografia do escritor. Esteve em Portugal pesquisando, pagou gente para ajuda-lo, recolheu documentos, produziu um livro justamente premiado. Também Teresa Rita Lopes fez descobertas e produziu muito sobre Pessoa, até em francês. Dizem que Richard Zenith termina outra biografia do múltiplo pessoa. Minha amiga Cleonice Berardinelli acabou de fazer uma nova antologia sobre Pessoa. E sou do tempo de Casais Monteiro-que conheceu Pessoa e de Jacinto do Prato Coelho que mergulhavam nesse já neste abismo cheio de heterônimos. 
Agora leio que o colombiano Jerônimo Pizzaro fez novas descobertas nas “arcas” e documentos que estão no na Biblioteca Nacioonal de Portugal. São 28 mil papéis, fora os dois mil documentos em posse da família. Vi as fotos de Pizarro, ele com luvas, manipulando piamente os documentos do acervo de Pessoa em Portugal. Esse novo descobridor nos é apresentado na revista “Ler” por Onésimo Almeida, professor em Brown (com quem estive duas vezes na ilha da Madeira). Açoriano convicto Onésimo diz que acompanha Jerônimo desde suas teses sobre Pessoa na Universidade de Harvard . E o pesquisador colombiano se apaixonou tanto pelo escritor português, que o Instituto Camões em Bogotá o abrigou. Antes mexendo nessas arcas infinitas, esse ensaísta havia publicado “A prosa de Alberto de Campos” . E tem algo curioso: gosta de grafar “O livro do desasocego” desse jeito (ao invés de “Desasossego), fazendo um jogo de palavras com cegueira. Atualmente, faz a triangulação Harvard, Bogotá e Lisboa está publicando um livro já intrigante no titulo- “Pessoa existe”?
Certos autores são perigosos. São vampiros. Se apossam da alma dos leitores e dos críticos. O caso de Clarice Lispector em nossa literatura é clássico. A leitor vem andando desprevenido, cai naquele abismo e ( felizmente) não sai nunca mais. Tem gente que se aproxima de Mallarmé, e pronto, passa toda a vida inteira jogando dados com as palavras. Joyce é outro vampiro de almas e destinos. 
Uma vez estive em Dublin. E depois de visitar a Joyce’s Tower (onde ele esquisitamente morou), fui visitar o Trinity College onde ele estudou. E não é que havia ali um congresso, tipo romaria mesmo, de adorares de Joyce reunidos em pia devocão?
Já ouvi de biógrafos a confissão de que foram vampirizados por seus biografados. Rui Castro recompondo as vidas de Garrinha e Nelson Rodrigues, passou por isto. Em minha vida acadêmica e de critico conheci isso de perto.
É uma coisa ambígua, coisa de mártir, fenômeno de simbiose. O indivíduo doa sua vida à vida de outro. E se mete tanto na vida alheia que até se esquece de si. 
Jerônimo Pizarro, no entanto, detaca essa frase de pessoa: ”Sejamos múltiplos, mas senhores de nossa multiplicidade”.

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