terça-feira, 23 de outubro de 2012

Palavras - a fisionomia poética



“Poesia é um entrosamento de palavras que se juntam e deixam você fascinado”. Ouvi de André, 5º série, esta  definição de poesia. Dita e vivida: o menino deliciava-se com seus poemas preferidos. Exerciam tal fascínio sobre ele que dezenas de vezes os lia, tomado de encanto. A Estrela,  de Manuel Bandeira, estava entre os seus preferidos. Aquela “estrela tão alta e tão fria” baixava das alturas na palma da mão do menino:  que coisas primeiras e penúltimas estrelavam na alma dele cada vez que lia de novo? – eu me perguntava, vendo-o ler para a classe toda. Lia outros também, porém, este o tinha devorado inteiramente.
“Poesia é música? É que nem música!”  - foi a conclusão de Ramon ao ouvir os poemas do livro Ou Isto Ou aquilo, de Cecília Meireles. Patrícia, em processo de alfabetização, descobre O Jogo e a Bola, do mesmo livro: “Fui pra casa e tentei ler sozinha. Fiquei tentando até tarde, até que consegui”. Todos os dias pedia-me para ler de novo este poema e ouvia-o, enlevada, o olho indo e vindo em passeio pela atmosfera lúdica do texto.
Patrícia repetia a 1º série há cinco anos quando me propus a ajudá-la. Não tenho dúvidas de que a poesia contribuiu para que ela deixasse para trás o fastio dos textos mecânicos da cartilha, repetidos anos a fio sem resultados, causando-lhe um enorme prejuízo  à auto-estima: “ não adianta você querer me ensinar a ler, eu não vou aprender, não tenho cabeça para o estudo” – fala que introjetara de tanto ouvir os adultos próximos repetirem.
Ao atualizarmos juntas a beleza, a emoção, a musicalidade da palavra poética ela foi percebendo a diferença e desejando aprender o mais rápido possível para ler sozinha aqueles textos que transbordavam de ludismo.
As crianças sentem que na poesia as palavras dizem mais, dizem  diferente; na poesia as palavras brincam de roda e, ao rodar, emitem faíscas, cintilam, “banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabadas de nascer”.
Arrisco-me a afirmar, com base na experiência, que é muito raro uma criança descobrir a poesia e não se encantar. Infelizmente o encontro da criança com a poesia ainda  é muito raro. Mas, quando ele acontece,  a corrente de paixão pela leitura se fortalece e é comum que elas desejem ler outros textos poéticos.
Se poucos livros de poesia houver na biblioteca da escola, o bibliotecário poderá se ver em apuros, pois, lançado o pacto lúdico com a poesia, os meninos e meninas envolvidos costumam ser ( felizmente) muito insistentes e, se já tiverem lido todo o acervo ( em geral escasso), virão à porta da biblioteca todo santo dia perguntar: “chegou livro novo de poesia?”
A insistência pode virar algo mais forte a ponto de alguns livros de autores muito amados serem disputados a tapas. Alguns resolvem que não vão mais devolver o livro: “Ah, perdi!”, “Deixei na casa da vó”, “Ficou em outra cidade”. Tudo pra não se separar do livro de poesia, livro que, afinal de contas, brinca, canta, dança e embala, como diz a educadora Ana Schirley: poesia é balanço nos galhos da goiabeira, ou como nos ilumina José Paulo Paes:

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.

Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.

As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?


Em reinos como o da literatura, da poesia, é a palavra sonhada que nos recebe à porta. Palavra mutável, rica, dinâmica, plural:

Abre-se a romã
Abre-se a manhã.

Palavra sonhada, vida sonhada. Então o poeta Mário Quintana já não disse que “uma vida não basta apenas ser vivida também precisa ser sonhada”? Voar numa revoada de poemas: mudar de lado o coração para pulsar no justo ritmo de uma palavra sonhada, descobrir o “outro” de si o “outro” dos mundos, trazer para perto as terras estranhas, remotas ou obscuras,  alargar o olhar pra lá, pra cá, pra além...
Quando a palavra é tocada pela poesia  se potencializa e cria a vida nova. As nomeações simbólicas têm o poder de subverter a ordem linear fixadora de sentidos. Liberta dos elos opressivos das convenções da lógica racional, a palavra reconquista a face mágica, o vigor mítico das origens e mostra-se em plenitude.

“A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, os seus sentidos e alusões, como um fruto maduro ou um foguete no momento de explodir no céu” ((Octávio Paz, 1992, p.26)

É outro o semblante da palavra na poesia, e este semblante a criança reconhece e rapidamente com ele se identifica. Huizinga (2000, p.133) dá ciência de que “ a poesia se exerce no interior da região lúdica do espírito, num mundo próprio para ela criado pelo espírito, no qual as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam na vida comum, estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da causalidade”. O saber intuitivo, o ludismo sonoro e semântico da poesia encontram ressonância no solo lúdico da infância, por isso, é recebida com encantamento e adesão afetiva.
Quando o aluno da primeira série da professora Maria Salete Ramos, interrompeu a leitura do livro de poemas que ela estava apresentando à turma, ficou de pé, de repente, e gritou: “Esse livro eu quero ler! É  esse mesmo! É esse que eu quero ler!”- reconheceu, com surpresa, o semblante mágico dos textos e nem conseguiu esperar a leitura acabar para expressar sua emoção, seu fascínio, e o desejo de tomar nas mãos o livro e provar por ele mesmo do repasto lúdico.
UM POEMA QUE INCENDEIA

COLAR DE CAROLINA

Com seu coral de coral
Carolina
corre por entre as colunas
da colina

O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.

E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
Põe coroas de coral

nas colunas da colina.

Tive uma aluna no curso de magistério que, ao ler este poema de Cecília Meireles, declarou que se via correndo junto com Carolina “por entre as colunas da colina” e que, sempre que pensava no poema, se via assim. Tinha se atirado para dentro do texto de corpo inteiro.
Como outros textos do livro Ou Isto Ou Aquilo, Colar de Carolina é um poema-aparição, pela força evocadora da imagem – a palavra encarnada, recriando a experiência.
O jogo sonoro, já no título, é um princípio de espanto que vira encanto ante a visão do poema surgindo entre mágico e incandescente. A cor do coral se mistura à mobilidade das coisas,  esparrama-se pelo colo da menina, confunde-se com o estado de alma.
Em “colunas da colina” a combinação sonora e imagética atinge o máximo de efeito: o fonema “l” aponta para os ares dando a idéia de altura. Palavra-visão: presentifica o ser nomeado, ao mesmo tempo que o reveste com o pó criativo, dando-lhe a face estranha que provoca a surpresa e o prazer.
O sol completa a incandescência:


põe coroas de coral
nas colunas da colina

E eis que o poema não termina: incendeia!
As palavras criadoras desalinham o real para realinhá-lo sob a ótica do imaginário em que contam a liberdade, o prazer, a invenção.

 BOCHECO, Eloí Elisabete. Poesia infantil: o abraço mágico. Chapecó: Argos, 2002, P. 13 a 20

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