“Poesia é um
entrosamento de palavras que se juntam e deixam você fascinado”. Ouvi de André,
5º série, esta definição de
poesia. Dita e vivida: o menino deliciava-se com seus poemas preferidos.
Exerciam tal fascínio sobre ele que dezenas de vezes os lia, tomado de encanto.
A Estrela, de Manuel
Bandeira, estava entre os seus preferidos. Aquela “estrela tão alta e tão fria”
baixava das alturas na palma da mão do menino: que coisas primeiras e penúltimas
estrelavam na alma dele cada vez que lia de novo? – eu me perguntava, vendo-o
ler para a classe toda. Lia outros também, porém, este o tinha devorado
inteiramente.
Patrícia repetia a 1º
série há cinco anos quando me propus a ajudá-la. Não tenho dúvidas de que a
poesia contribuiu para que ela deixasse para trás o fastio dos textos mecânicos
da cartilha, repetidos anos a fio sem resultados, causando-lhe um enorme
prejuízo à auto-estima: “ não adianta você querer me ensinar a ler, eu
não vou aprender, não tenho cabeça para o estudo” – fala que introjetara de
tanto ouvir os adultos próximos repetirem.
Ao atualizarmos juntas
a beleza, a emoção, a musicalidade da palavra poética ela foi percebendo a
diferença e desejando aprender o mais rápido possível para ler sozinha aqueles
textos que transbordavam de ludismo.
As crianças sentem que
na poesia as palavras dizem mais, dizem diferente; na poesia as palavras
brincam de roda e, ao rodar, emitem faíscas, cintilam, “banhadas por uma luz
antiqüíssima e ao mesmo tempo acabadas de nascer”.
Arrisco-me a afirmar,
com base na experiência, que é muito raro uma criança descobrir a poesia e não
se encantar. Infelizmente o encontro da criança com a poesia ainda é
muito raro. Mas, quando ele acontece, a corrente de paixão pela leitura
se fortalece e é comum que elas desejem ler outros textos poéticos.
Se poucos livros de
poesia houver na biblioteca da escola, o bibliotecário poderá se ver em apuros,
pois, lançado o pacto lúdico com a poesia, os meninos e meninas envolvidos
costumam ser ( felizmente) muito insistentes e, se já tiverem lido todo o
acervo ( em geral escasso), virão à porta da biblioteca todo santo dia
perguntar: “chegou livro novo de poesia?”
A insistência pode
virar algo mais forte a ponto de alguns livros de autores muito amados serem
disputados a tapas. Alguns resolvem que não vão mais devolver o livro: “Ah,
perdi!”, “Deixei na casa da vó”, “Ficou em outra cidade”. Tudo pra não se
separar do livro de poesia, livro que, afinal de contas, brinca, canta, dança e
embala, como diz a educadora Ana Schirley: poesia é balanço nos galhos da
goiabeira, ou como nos ilumina José Paulo Paes:
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio,
pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo
dia.
Vamos brincar de
poesia?
Em reinos como o da literatura, da poesia, é a palavra sonhada que nos recebe à porta. Palavra mutável, rica, dinâmica, plural:
Abre-se a romã
Abre-se a manhã.
Palavra sonhada, vida
sonhada. Então o poeta Mário Quintana já não disse que “uma vida não basta
apenas ser vivida também precisa ser sonhada”? Voar numa revoada de poemas:
mudar de lado o coração para pulsar no justo ritmo de uma palavra sonhada,
descobrir o “outro” de si o “outro” dos mundos, trazer para perto as terras
estranhas, remotas ou obscuras, alargar o olhar pra lá, pra cá, pra
além...
Quando a palavra é
tocada pela poesia se potencializa e cria a vida nova. As nomeações
simbólicas têm o poder de subverter a ordem linear fixadora de sentidos.
Liberta dos elos opressivos das convenções da lógica racional, a palavra
reconquista a face mágica, o vigor mítico das origens e mostra-se em plenitude.
“A palavra, finalmente
em liberdade, mostra todas as suas entranhas, os seus sentidos e alusões, como
um fruto maduro ou um foguete no momento de explodir no céu” ((Octávio Paz,
1992, p.26)
É outro o semblante da
palavra na poesia, e este semblante a criança reconhece e rapidamente com ele
se identifica. Huizinga (2000, p.133) dá ciência de que “ a poesia se exerce no
interior da região lúdica do espírito, num mundo próprio para ela criado pelo
espírito, no qual as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente da
que apresentam na vida comum, estão ligadas por relações diferentes das da
lógica e da causalidade”. O saber intuitivo, o ludismo sonoro e semântico da
poesia encontram ressonância no solo lúdico da infância, por isso, é recebida
com encantamento e adesão afetiva.
Quando o aluno da
primeira série da professora Maria Salete Ramos, interrompeu a leitura do livro
de poemas que ela estava apresentando à turma, ficou de pé, de repente, e
gritou: “Esse livro eu quero ler! É esse mesmo! É esse que eu quero
ler!”- reconheceu, com surpresa, o semblante mágico dos textos e nem conseguiu
esperar a leitura acabar para expressar sua emoção, seu fascínio, e o desejo de
tomar nas mãos o livro e provar por ele mesmo do repasto lúdico.
UM POEMA QUE INCENDEIA
COLAR DE CAROLINA
Com seu coral de coral
Carolina
corre por entre as
colunas
da colina
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela
cor
do colar de Carolina,
Põe coroas de coral
nas colunas da colina.
Tive uma aluna no
curso de magistério que, ao ler este poema de Cecília Meireles, declarou que se
via correndo junto com Carolina “por entre as colunas da colina” e que, sempre
que pensava no poema, se via assim. Tinha se atirado para dentro do texto de corpo
inteiro.
Como outros textos do
livro Ou Isto Ou Aquilo, Colar de Carolina é um poema-aparição, pela força
evocadora da imagem – a palavra encarnada, recriando a experiência.
O jogo sonoro, já no
título, é um princípio de espanto que vira encanto ante a visão do poema
surgindo entre mágico e incandescente. A cor do coral se mistura à mobilidade
das coisas, esparrama-se pelo colo da menina, confunde-se com o estado de
alma.
Em “colunas da colina”
a combinação sonora e imagética atinge o máximo de efeito: o fonema “l” aponta
para os ares dando a idéia de altura. Palavra-visão: presentifica o ser
nomeado, ao mesmo tempo que o reveste com o pó criativo, dando-lhe a face
estranha que provoca a surpresa e o prazer.
O sol completa a
incandescência:
põe coroas de coral
nas colunas da colina
E eis que o poema não
termina: incendeia!
As palavras criadoras
desalinham o real para realinhá-lo sob a ótica do imaginário em que contam a
liberdade, o prazer, a invenção.
BOCHECO,
Eloí Elisabete. Poesia infantil: o abraço mágico. Chapecó: Argos, 2002, P. 13 a
20
Nenhum comentário:
Postar um comentário