ALMA ENRODILHADA, ALMA RENDILHADA
Na infância, eu gostava de observar a avó fazendo renda na almofada de bilros. Ela parecia alhear-se de tudo o mais: concentrava-se unicamente no prazeroso trabalho de transformar a linha em delicada renda. Os meus olhos de menina miúda não conseguiam acompanhar o movimento ligeiro e preciso das mãos da avó. E aquilo me fascinava. Os "cachimbinhos sem furo", trançados de modo amoroso e eficiente, pareciam pequeninos operários cantantes. Sim, cantantes. Iam batendo uns nos outros, animados, e, à fresca da tarde, no oitão da casa, com as pitangueiras cheiinhas de folhas novas, aquele som era alegre e ritmado como uma canção.
Aliás, tudo me fascinava quando eu via a avó - que em moça teve corpo de leves requebros e doce sensualidade - fazer renda com os bilros. Um dia eu falei: "Avó, quando eu crescer, também quero fazer renda, mas não é de linha, não, é de papel". A avó, naturalmente, estranhou e me mandou pegar da tabuada e estudar números.
Aliás, tudo me fascinava quando eu via a avó - que em moça teve corpo de leves requebros e doce sensualidade - fazer renda com os bilros. Um dia eu falei: "Avó, quando eu crescer, também quero fazer renda, mas não é de linha, não, é de papel". A avó, naturalmente, estranhou e me mandou pegar da tabuada e estudar números.
Não escolhi números para a minha vida. Escolhi a poesia. E quando escrevo, alheio-me, à maneira da avó, de tudo o mais. Concentro-me unicamente no prazeroso (e difícil) trabalho de transformar a minha alma enrodilhada numa alma rendilhada.
A avó, sem querer, inscreveu-se em mim como o primeiro ponto da renda que, sei, ela continuaria com a delicadeza das almas silenciosamente sofredoras. Mas a vida, com suas rasteiras imprevisíveis, tem tentado fazer de mim uma alma enrodilhada, emaranhada em silêncios ressentidos e em escolhas afetivas equivocadas.
A avó, sem querer, inscreveu-se em mim como o primeiro ponto da renda que, sei, ela continuaria com a delicadeza das almas silenciosamente sofredoras. Mas a vida, com suas rasteiras imprevisíveis, tem tentado fazer de mim uma alma enrodilhada, emaranhada em silêncios ressentidos e em escolhas afetivas equivocadas.
A literatura - renda em papel - é a minha trincheira de resistência. A vida me dói? Escrevo. A paixão amorosa me privilegia e me desassossega? Escrevo. A morte mostra a cara quando leva algum amigo? Escrevo. Alguém me atraiçoa, negando-me a inteireza do afeto? Escrevo. A minha alma amanhece com a sensação de desamparo, sabendo-se sem um colo acolhedor? Escrevo.
E, ao escrever, teço-me renda. Sou linha e sou bilro e sou almofada recheada com a folha da bananeira. Sou neta maravilhada diante de uma avó no oitão da casa, à fresca da tarde, espiando as folhinhas novas da pitangueira, mas sou, também, avó seduzida pelos risos infantis que, hoje, enchem a minha casa e o meu coração.
Escrevo, escrevo, escrevo. Apaixonadamente. Com a alegria e com as contradições de uma alma que nasceu poética, que sofreu muitos reveses e que insiste em não ser enrodilhada, mas rendilhada...
(In: Artesanias da Palavra)
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