sábado, 17 de agosto de 2013

O melhor jeito de dizer adeus

O MELHOR JEITO DE DIZER ADEUS
(última Carta da Redação da revista Bravo - agosto/2013)

A Flip e demais festas literárias que se espalham pelo Brasil são a prova: escrever com desenvoltura e originalidade não significa necessariamente ter aptidão para dar conferências, mediar debates ou mesmo jogar conversa fora num boteco. Nem todos os romancistas, poetas e contistas dominam a narrativa oral. O português José Saramago certamente não pertencia à turma dos ruins de papo. Em geral, quando decidia enfrentar uma palestra ou entrevista, assumia contornos de Sherazade e discorria sobre inúmeros temas de maneira hipnótica. Quem o escutava saía da experiência quase sempre maravilhado. Como mostra a reportagem que ganhou a capa desta edição, Saramago discursou para uma seleta plateia de intelectuais na primavera de 1998, em Turim.

Durante mais ou menos uma hora, relembrou os antepassados, reviu a própria carreira e identificou diferenças entre os livros que publicou – tudo de improviso, com graça e clareza desconcertantes. O pronunciamento, transcrito, resultou em 28 páginas.

O fim da apresentação recuperava uma história que o literato já contara outras vezes e que continua me emocionando. Quando beirava os 73 anos, Jerónimo, o avô materno de Saramago, sofreu um acidente vascular cerebral. O infortúnio não parecera tão grave de início, mas depois se revelou preocupante. O médico recomendou, então, que o paciente abandonasse a aldeia onde morava e se internasse num hospital de Lisboa. Jerónimo – um homem rude, analfabeto, que criava porcos – dividia com a mulher uma casa simples, de apenas dois cômodos e chão de barro. No quintal, plantara umas quantas oliveiras, figueiras e pereiras. Mal a carroça que o levaria à estação ferroviária chegou, o velho, pressentindo que não retornaria, saiu do casebre e abraçou cada uma das árvores. Não emitiu nenhuma palavra. Somente chorou baixinho e enlaçou a minúscula floresta.

O episódio me impressiona sobretudo pela contenção. Para se despedir dos seres mansos e quietos que lhe encheram os dias de sentido, o camponês optou por um gesto igualmente manso e quieto. Não lamentou o rumo que as coisas tomaram, não amaldiçoou as transformações que presenciava nem as que deixaria de presenciar, não fez elogios às árvores, não recordou os bons momentos que compartilharam. Resignou-se em dizer tudo o que gostaria sem dizer nada. Ironicamente, tempos depois, o neto de Jerónimo se notabilizaria justo pelo contrário: pela necessidade incontornável de atar a vida às palavras. Não quaisquer palavras, é claro, mas ainda assim palavras – e copiosas, fluidas, abrangentes.

Ocorre que, em determinadas circunstâncias, atitudes semelhantes às do avô têm impacto maior que posturas como as do neto. Há despedidas que não encontram tradução. O que falar diante de um amigo que se muda para bem longe, um amor que morre, um projeto querido que se interrompe? Às vezes, o melhor – o mais preciso e eloquente – é dar adeus em silêncio.

Armando Antenore
Redator-chefe

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