O leitor é um ser misterioso que faz parte da trama e da linguagem de uma ficção. É um coautor da invenção que está lendo. Procurar a identidade deste ou daquele leitor é uma busca sem fim, uma inconsequente especulação metafísica ou um salto no escuro. Por isso, quando escrevo, nunca penso no leitor. Mas na semana passada, tarde da noite, quando tinha acabado de ler na mesa de um bar um conto de um escritor argentino, um homem se aproximou de mim e disse com uma voz ríspida:
Sou um leitor e vim acertar as contas com você.
Eu ia perguntar alguma coisa, mas ele prosseguiu:
Por dois motivos: o primeiro é que você me excluiu do seu romance. O segundo e mais grave é que você matou meu pai nesse mesmo romance.
Fechei o livro que estava lendo e olhei com receio o intruso que falava com a disposição de um inimigo. Não sei como, uma voz saiu de dentro de mim:
Você foi excluído? Eu matei seu pai?
Isso mesmo. Seu romance é um relato calunioso, uma mentira pérfida. Eu sou o terceiro irmão, que você ignorou de uma forma vil. Além disso, meu pai está vivo. É um absurdo o que você fez com ele.
As janelas do bar estavam embaçadas; mesmo assim, procurei com os olhos um recorte da noite ou da realidade. Durante uns segundos, cedi ao efeito da bebida e duvidei da existência da voz que acabara de ouvir; em seguida vi com nitidez o rosto do homem a três palmos dos meus olhos.
Chuviscava. Ninguém nas calçadas. Os dois garçons tinham sumido e o vento frio entrava pela única porta aberta. Pensei: devia ter ido embora com o último notívago; pensei também que nesta cidade o último crime nunca é o último. Alguém está morrendo neste instante, alguém fez um disparo e amanhã a notícia desse crime recente será velha e inútil. Ia tomar um gole de conhaque, mas minhas mãos tremiam e achei prudente não revelar meu medo. Sem olhar para o intruso, me levantei com um gesto calmo, um gesto calculado e fingido. O conto que acabara de ler me deixou mais confuso e temeroso. Percebi que só eu e o intruso estávamos no bar; quase ao mesmo tempo percebi que ele era muito mais forte do que eu. Por um momento - uns cinco ou seis segundos - pensei que as acusações tinham chegado ao fim. Um bêbado ou um desesperado soltou um grito em algum lugar do quarteirão; esse som rompeu o silêncio e me aliviou um pouco. Quando o eco do grito sumiu, a noite se entregou ao silêncio demorado, que prenuncia o perigo. De repente, o homem enfiou a mão direita no bolso do casaco e em seguida abriu a outra mão com um gesto de mágico que me pareceu patético. Vi uma lâmina enferrujada na mão aberta e ouvi uma sentença em voz grave:
Para um mentiroso e covarde como você, não há saída.
Assustado, apenas murmurei: Há uma.
O intruso fechou a mão, apontando a lâmina escura no meu peito; olhou furtivamente para a porta aberta e perguntou com desprezo:
Qual saída?
Escrever outro livro, incluir um terceiro irmão na trama e ressuscitar seu pai.
E assim fiz, escrevendo como um louco até o amanhecer, quando enfim me livrei do pesadelo.
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