sábado, 13 de agosto de 2011

O afilhado - Conto de Arriete Vilela

Os olhos de Nildinha colaram-se no pote de água, a um canto da cozinha. Tinha certeza: o menino escondera-se ali atrás. Mas não era possível. O menino estava morto há mais de dois anos.

Nildinha era a madrinha do menino. Ela mesma tinha menos de cinco anos quando o levou à pia batismal. Segurou-o com excessos de cuidado: receava machucá-lo ou derrubá-lo. Era já uma menina muito séria e muito responsável para a idade. Talvez por isso tenha sido convidada para ser a madrinha. A partir daquele dia, passou a ter uma comadre, um compadre e um afilhado, o que lhe dava uma certa distinção junto às outras crianças. Bom dia, comadre Nildinha, Como vai passando, comadre Nildinha?, Dê a bênção ao menino, comadre Nildinha, e assim por diante eram cumprimentos que a tornavam uma menina diferenciada, cheia de comedimentos, mesuras, compenetrações. Se estava a brincar, pulando corda ou no jogo das pedrinhas, afogueada como um raiozinho de sol, mal avistava a comadre ou o compadre e já se compunha: passava as mãos nos cabelos para acomodá-los melhor, ajeitava a roupa, enxugava com a barrinha da saia o rosto suado e, como um adulto, respondia à saudação, sem se esquecer de perguntar pelo afilhado.

Quando o menino morreu, Nildinha chorou um pouco e logo o esqueceu. Ela era uma criança e, talvez por isso, não internalizou aquela perda, não ficou a remoer saudades. No caixãozinho branco, o menino parecia dormir. Ela o olhou e disse: Deus te abençoe, meu afilhado. E só. No dia seguinte, brincava na pracinha como se nada houvesse acontecido. Mas continuou a considerar o pai e a mãe do menino como seus compadres, a cumprimentá-los com respeito e estima.

Pois naquela manhã, na cozinha da casa da comadre, Nildinha viu o afilhado morto a esconder-se, brincalhão, por detrás do pote de água. Ela havia ido buscar qualquer coisa emprestada, a pedido de sua mãe. Chamara pela comadre e, sem resposta, fora entrando. Ao ver o menino, Nildinha perguntou:
– O que está a fazer aí, meu afilhado?
Silêncio.
Ela de novo perguntou:
– O que está a fazer aí, meu afilhado?
Silêncio.
Então ela foi até o pote, arrodeou-o, mas não encontrou ninguém. Voltou para o ponto em que estava, recostou-se na porta da cozinha, e então viu a carinha risonha do menino a mostrar-se por detrás do pote de barro. O menino sorria, e ela notou quanto ele era bonitinho com aquele jeito moleque de olhar e de fazer gracinha. Ela foi outra vez até o pote, arrodeou-o, mas não encontrou ninguém. Novamente ficou à porta da cozinha e outra vez viu a carinha alegre do menino.
Então lhe rebentou no peito uma vontade danada de brincar com ele, de apertar-lhe as bochechas rosadas, de ouvir aquele riso desatado como pequenos sinos tocando nas manhãs de sol do povoado. A menina Nildinha queria-o para ser seu boneco, seu brinquedo, seu fofinho. E então muitas vezes ela foi até o pote, arrodeou-o, buscou em vão o afilhado. Só quando se distanciava, via-o a rir-se. Tonta e confusa, começou a chorar. Quando sua comadre voltou, encontrou-a abraçada ao pote, num pranto convulsivo.

Nildinha não se impressionara com a aparição do menino morto, mas estava absolutamente desconsolada por não poder ficar com ele para sempre.

Naquela manhã, o coração de Nildinha conheceu a dor dos improváveis desejos que se semelham a miragens...


(In: Lãs ao Vento)

Nenhum comentário:

Postar um comentário