domingo, 9 de outubro de 2011

Fantasia e Avesso II - Arriete Vilela

“Não há garantia nenhuma. Mas é desejar um compromisso, sem nenhuma garantia, que faz do amor algo especial.” (George Weinberg)

O fio da meada, amor: retomado como se, sobre ele, fosses atravessar imensos desfiladeiros. O avesso da civilização nas suas incompreensíveis coerências e nos seus adornos, nas suas explicações intermináveis, quase sempre inúteis. A fantasia do balanço feito na mangueira do fundo do quintal e eu lá, menina ainda, pequenina flor agitando-se ao vento, voando no ar. As inocências desveladas, os nascimentos e os frutos: os quintais da minha fantasia, um mundo minuciosamente sôfrego, cheio de expectativas e de mistérios. E tu, amor, és o começo do arco-íris que mergulha no limite do mar; se já me esperasses ao fim dele, creio que te confundiriam com o pote de moedas de ouro que os seres elementares dizem existir. Eu te quero sempre no começo, no renovo. Eu te quero no sangue aquecido de emoções, e se não te dou a paz dos bem-aventurados bíblicos é porque a paz, amor, é a ausência das emoções humanas e eu te quero cheio de uma humanidade plena, embora imperfeita. Eu te quero prescindindo de uma realidade que passa a ser comum quando não tem avesso. De novo a palavra: mergulho e fôlego, um desafio. Um barulho seco no coração ansioso, uma esmola gorda na mão que obsta o caminho; um tremor nas carnes, os nervos retesados: a implosão - e é tudo uma questão de aura ou de carma. Ou de pelos eriçados de paixão. Ou do fremir. Ou do nada, simplesmente. Porque eu te amo a partir do nada. A partir do pó e do sopro de que somos feitos cotidianamente. Ou de toda essa confusão que se instala no peito que ama e que dança ao som da melodia do andante cantabile. O avesso, amor, de qualquer argumento, de qualquer racionalidade, de qualquer aritmética. A fantasia, não te esqueças. Da flauta doce e dos teus doces olhos. Do mergulho na brabeza do mar desconhecido, uma luta desigual e bonita. Esse mar que nunca te traz, qual marinheiro em desventrados azuis que não são provisórios. A fantasia e o avesso. Dos músculos que não se contraem quando escrevo, porque estou absolutamente entregue. A fantasia dos teus atos que me vêm através de mil pés, nenhum deles capenga. A fantasia da mãe cigana que me rouba numa carroça em pandarecos toda vez que o meu coração sangra. Ela me leva por qualquer estrada, contanto que a dor se distraia de mim e me abandone de mansinho; ela deita a minha cabeça sobre a sua velha saia rodada e colorida e me canta uma canção cigana qualquer; ela afaga os meus cabelos como só uma mãe sabe afagar, porque, então, eu preciso muito de um afago. A mãe cigana me rouba, tu sabes, porque às vezes eu também careço de me curar de ti; ela lê a minha mão e quando vê o teu nome mil vezes repetidamente escrito nos traços do meu destino, ela se cala e sei que terei ximbras vindas dos olhos dela. Eu amo a minha mãe cigana e ela te ama porque sabe que és a minha prioridade de vida. Sim, a palavra, amor: pérola na ostra, pistilo, larva e lastro, possibilidade e intuição. Uma estranheza que, às vezes, apesar da dor na carne, paira muito além de mim. A palavra: uma re/invenção, um sufrágio, um acúmulo. Uma perplexidade, quase sempre. O que excede da minha paixão, hemorrágica e vadia. Tu sabes, amor, que quando me apreendes implicitamente, tu próprio ultrapassas o teu significado visível, e temos, ambos, a sintonia do êxtase real, no cerne mesmo do ato. A palavra é canto de aleluia e serve para que eu me mostre maravilhada diante da doçura enovelada que és, qual borboleta amarela, qual música de Tchaikovsky, qual energia alegre. Ah, amor: fantasia e avesso. O fio da meada, perdido...


(In: FANTASIA E AVESSO)





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