sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Fantasia e Avesso IV - Arriete Vilela

“E o amor que se perdeu, ao retornar, sempre há de ser mais belo, e maior, e mais grato, e mais forte.” (Shakespeare)

O resgate da fantasia. Novamente atreladas, flor e pedra. O renovo, a palavra desfiando a teia lógica das coisas. No avesso da imprevisibilidade do destino, a marca singularíssima da incoerência da bondade de Deus. O fio perdido, amor, e agora retomado, puxando devagar a extensa esteira da eternidade. Uma questão de sentimento, tu sabes. Antropofágico, sôfrego, inevitável esse tremor nas carnes: o olho atento ao fundo plano do baú. A palavra: um mundo, feito um ovo, repetidamente posto em pé. A palavra, às vezes, encerra-se em si mesma, como a tartaruga. O fio retomado da minha paixão voraz e jogado por cima do muro alto: o grande desafio de vida. Ciranda, cirandinha, vamos de novo cirandar. Ah, amor, distorço passado e futuro para que te incluas somente em mim, pois amar-te é como tocar na força viva do prazer, ferida majestosa feito gema amarela; um prazer doce e tenso, flutuando no teu cheiro secreto, cumulado de úmidas carícias, mornas e nuas, abelhas caídas no cristalino da flor. O avesso do nosso código instaurado, do novo discurso amoroso. A fantasia da mesma lua redonda de brilho e de sonho, refletida no ventre prenhe de ansiadas palavras, com as quais te apalpo e que nunca se submetem aos meus ímpetos. Porque estou sempre perplexa diante de uma saudade que abstrai o sentido real do que rotineiramente és. A palavra: gosto de peixe cru na boca, resina escorrendo pelo corpo, lua cheia encharcada de chuva e de solidão. A palavra é feito espinho no pé. O avesso dessa paixão que às vezes toca a minha alma, impiedosamente, ao ponto de nocauteá-la. Justo a minha alma, cigana e borboleta, intraduzível e silenciosa, que se cria a partir da tua compreensão e morre quando tua lógica encurta o caminho através das formas ensombreadas da linguagem. Ah, a palavra: é como estar leve e solta dentro de um enorme vazio: flutuo sem adjetivos, apenas intuitivamente, isenta de aflições, desenraizada, numa preciosa solidão cheia de acessos a ti, à espera do teu afago e do teu silêncio, atenta ao abandono da tua alma fluida e da realidade fibrosa e vigilante do teu coração. O avesso de qualquer mistério e de qualquer explicação, amor, por causa da minha postura diante da eternidade, desconhecida e incompreensível flor branca que já não me amedronta, porque estou plena somente de ti. Pois os teus olhos de luz dourada me avessam, tu sabes, e então sigo as rotas que traças no mapa dos instantes - e se mudas o rumo, como se fora apenas uma questão de humor, sou gaivota voando com as asas desesperadas de uma águia. A fantasia, amor, da grande lona de circo protegendo-nos de todos os maus olhares, amém. A palavra boiando dentro de mim, energizando a minha carne - borboleta amarela rondando a flor ardente, um grande salto dentro da noite. O avesso da realidade coletiva e gregária, que não comporta o único referencial com que te aguardo: uma vadia paixão, poetizada e hemorrágica, princípio vital cheio de ritos, estopim e emboscada. Uma paixão clandestina, à margem do caminho comum das pessoas; uma paixão impaciente, criativa nos agrados, dengosa, tirânica, intensa. A fantasia, amor, não te esqueças. Novamente atreladas, flor e pedra. Sem fragmentação de vida, sem suspense traído, sem presenças viscosas. Ternuras renovadas, o incenso posto ao lado, as bolinhas no lençol de águas brancas com que te brinco e te cubro etcétera e tal. O fio da meada perdido e agora retomado. Perdido e retomado. Retomado, amor...

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