terça-feira, 11 de outubro de 2011

Fantasia e Avesso III - Arriete Vilela

“Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
Amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?”
(Carlos Drummond de Andrade)


... e retomado. Noutros termos, bem sabemos. Qual asa quebrada do pássaro selvagem. A palavra: fantasia e avesso. Uma febre, uma doença sem cura, ferida perpétua, apesar da flexibilidade. A palavra: último momento, última chance, último fim. Cais em noite escura, ventania, convite, cheiro acre no lençol. A caixa de rapé, velhas associações, o pigarro, a ira sem espuma. O avesso da própria fantasia: mosaicos sobre a minha amargura de estar vivendo um poliedro. Noutros termos, agora, o cristal e o lírio, a dor e as farpas. O real sem porto de chegada. O avesso cruel, antropofágico, enlouquecido. Janelas sendo fechadas na cara fria de tanto receber o vento cheio de vazios. As ternuras no trilho do trem; os perdões passivos, fáceis e súbitos, indiferentes. A palavra: ouro no velho baú, piratas rondando, o medo furando os olhos, lâmina afiada e seca. O avesso das tuas ponderações, das tuas extraordinárias ponderações, das tuas inúteis ponderações. A tua sensatez e a tua opção. A fantasia que estava por detrás de tudo isso. A alegria que havia nas expectativas e nas imponderações e na tua alma e no meu desejo. 0 fio da meada, amor, perdido e retomado agora noutros termos. De um jeito que eu não queria. Qual desenho no papel jogado às feras. A palavra: plantão e isca, o olho na ponta do anzol. O mundo e as coisas, borboleta marrom, aranha caída no vermelho da flor, baba peçonhenta. Pétalas negras molhadas no sangue doce. Ah, o avesso da singularidade de tudo o que me chegava através de uma hemorrágica paixão. O avesso da libertação torturada na asa quebrada do pássaro selvagem. A dor do golpe dado às costas, a dor da perda. O avesso da minha desesperada decisão de não te procurar, pois continuo sem saber destravar portas e postigos. O avesso, amor, da tatuagem feita a ferro e brasa. A fantasia da lona cobrindo o imponderável circo que era o meu coração, quando estávamos ambos na mesma corda bamba. O avesso dessa história que se vai abreviando e cujo fio está labirinticamente perdido. Ah, a palavra: sem sintonia, agora, sem bússola e sem leme. Descolada de mim, a palavra. O som dos pratos distanciando-se da fanfarra. O som perdido do que me era apaixonante, do que me brincava nos olhos calmos. O fio da meada retomado nos dentes trincados de agoniada dor. O avesso da morte tantas vezes driblada, enganosamente. O descuido do anjo, o descaso, a cruz fincada no chão. Não mais a palavra fácil, não mais o tremor nas carnes, os nervos retesados: a alegria do escrever. O mergulho no mar desconhecido, a cerveja gelada e o balanço na rede. O avesso do privilégio de se ter tudo isso, sabendo-se que os anões roubaram um pedaço do coração, uma lasca da alma, amor, uma fatia do bolo com cobertura de suor vivo. A fantasia das nossas sombras imitando-nos ao sol; do arco-íris desfazendo-se no nosso corpo; das nossas tardes, amor, sem outras presenças e sem esse limão de agora. A palavra: magia e milagre, macio cetim no oco da minha alma. A palavra asfixiando-se na palavra que tu me deste e que era de vidro e se quebrou. A fantasia do reino de muitos avessos e de poucas palavras verdadeiras. A fantasia, amor, da lua minguante. Feito o teu amor. Feito a minha alegria. Feito a palavra. Feito esse fio perdido e, creio, nunca mais retomado.

(In: FANTASIA E AVESSO)

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