domingo, 24 de junho de 2012

Da ILUSTRÍSSIMA (Folha de São Paulo)


O russo e o bruxo
Nabokov e Machado têm muito em comum

RESUMO O professor irlandês Brian Boyd faz aproximações entre as obras de Vladimir Nabokov e Machado de Assis. Publicado na íntegra pela revista "Serrote" no 11, que chega às livrarias no sábado (30), o texto afirma que, fosse Machado mais conhecido em seu tempo, teria influenciado escritores como o autor de "Lolita" ou James Joyce.

BRIAN BOYD
TRADUÇÃO ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA E BRUNO COSTA


FIQUEI SABENDO DO grande romancista brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) pelo entusiasmo que [o escritor americano] John Barth nutria por ele e comprei uma série de seus romances em 1975, antes de trocar Barth por Nabokov como tema de minha tese de doutorado.
O escritor brasileiro e especialista em mídias sociais Claudio Soares, que se inspirou em "Fogo Pálido", de Nabokov, e em meu site AdaOnline para escrever seu romance hipertextual "Santos Dumont Número 8", me escreveu perguntando se por acaso Nabokov conhecera Machado. Eu mal havia sorvido um gole das águas borbulhantes porém amargas de Machado, mas respondi que, até onde eu sabia, Nabokov nunca tomara conhecimento da existência de Machado, mas teria gostado dele.
Soares organizou um encontro em que eu faria uma palestra na Academia Brasileira de Letras, da qual Machado de Assis foi presidente e fundador, em 17 de setembro de 2009. Eu havia sugerido de modo precipitado que poderia falar sobre Nabokov e Machado e, à medida que a data se aproximava, tive de devorar Machado em grandes bocados. Que banquete! Na minha opinião, ele tem seu lugar entre os grandes escritores de ficção da segunda metade do século 19. Teria influenciado Joyce a escrever de forma diferente. [...]
Vladimir Nabokov, pelo que sei, não tinha conhecimento da existência de Machado de Assis. Se ele o tivesse lido, certamente teria dito isso de modo inequívoco e o teria classificado entre os mais importantes escritores de ficção do século 19, ao lado de Dickens, Flaubert e Tolstói.
Nabokov gostava de afirmar que, depois de sua obra juvenil, nunca foi influenciado por ninguém. Se Machado fosse tão conhecido fora do mundo lusófono, como ele merece, os críticos teriam, sem dúvida, reconhecido sua influência sobre Nabokov.
Como prova das semelhanças surpreendentes na obra de ambos, e desconsiderando o pequeno detalhe de que Nabokov nada sabia de Machado, tais críticos poderiam ter decidido mais em favor de Machado do que aqueles que têm proposto Púchkin, Gogol, Tolstói, Joyce, Proust, Kafka como influências de Nabokov.
O brasileiro e o russo quase poderiam ter imaginado as obras um do outro: Nabokov poderia facilmente ter desenvolvido as ideias por trás de histórias de Machado, como "Primas de Sapucaia!", "Último capítulo" e "D. Paula", assim como Machado poderia ter como premissas as ideias por trás de histórias como "Uma História para Crianças", "Uma Questão de Honra" ou "Lábios nos Lábios" [os três integram o livro "Contos Reunidos", de Nabokov, que a Alfaguara lança em novembro].
Nabokov fez uso repetidas vezes do paradoxo central do romance inovador de Machado "Memórias Póstumas de Brás Cubas", narrado de além-túmulo. Na novela de Nabokov "O Olho", Smurov, o narrador, conta no início da história que cometera suicídio, mas prossegue a narrativa. Em "Transparent Things", o narrador é um romancista que morre no curso da história e saúda o herói no limiar da morte na última linha.
Em "Look at the Harlequins!", o narrador cita um pequeno verso, "O eu do livro/ não pode morrer no livro", mas descreve um delírio que dura três semanas, no qual ele se sente como numa travessia pela morte, não muito diferente da visão delirante e extemporânea ao tempo humano que Brás Cubas sofre pouco antes de sua morte. [...]
Nabokov teria ficado impressionado com o Machado escritor, ainda que pudesse ter se frustrado algumas vezes ao descobrir que fora superado na elaboração de ideias que poderia ter usado. Ele teria gostado de saber que Machado tinha rica ascendência africana.
Em 1942, Nabokov palestrou em uma faculdade de mulheres negras, em Atlanta, em meio à segregação do sul dos Estados Unidos, e encantou o público ao falar de Púchkin e do orgulho que Púchkin tinha de sua oitava parte de ascendência africana. Contou que Púchkin, o maior poeta desde Shakespeare, "oferece um dos exemplos mais marcantes de humanidade, em que a mistura de raças é permitida". [...]
Poderia me divertir por uma hora apenas tirando coelhos verbais da cartola para ilustrar os momentos em que Machado e Nabokov parecem fazer parte do mesmo número de mágica.
APARTES A ficção autoconsciente se estende, pelo menos, desde Luciano [c. 120-c. 180] e Apuleio [c. 124-c. 170], passando por Cervantes [1547-1616] e Sterne [1713-68] até o pós-modernismo, mas Machado e Nabokov parecem particularmente próximos em seus rápidos apartes cômicos dirigidos aos leitores.
No início de "Lolita", Humbert escreve que de alguma forma sentira que Lolita estava pronta para ser beijada por ele: "Não tenho como dizer a meu douto leitor (cujas sobrancelhas, suspeito, a essa altura já devem ter ultrapassado o topo da sua calva), não tenho como dizer-lhe de que modo essa certeza me ocorreu". Em um estágio muito mais avançado da perseguição a Lolita, Humbert apela de um jeito divertido a uma parte da plateia: "Frígidas senhoras do júri!".
Os narradores de Machado, também, dirigem-se a leitores ora masculinos, ora femininos, segundo o contexto ou o impulso. Embora Nabokov tenha a reputação de provocar o leitor, Machado repreende muito mais abertamente seus maus leitores imaginários ("O maior defeito deste livro és tu, leitor"; "Valha-me Deus! é preciso explicar tudo?") -e assim instrui, diverte e lisonjeia seus bons leitores.
Tanto Machado quanto Nabokov extraem à força a comédia, o drama e as revelações psicológicas dos processos de composição e publicação do narrador. Bento Santiago confessa, quando o controle sobre a própria história começa a lhe escapar: "Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer".
Humbert escreve, em mais um de seus momentos de desespero: "Acho que não consigo continuar. Coração, cabeça -tudo. Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita. Repita até encher a página, impressor." Brás Cubas nota: "Convém intercalar este capítulo entre a primeira oração e a segunda do capítulo 129". [...]
Machado e Nabokov tornam seus leitores conscientes do livro como livro. Tolstói pode evocar a beleza de Natasha ou Anna em um baile, mas apenas Machado poderia escrever de Sofia: "Sofia estava magnífica. Trajava de azul-escuro, mui decotada, -pelas razões ditas no capítulo 35."
Como Machado, Nabokov era inimigo da pena de morte. E começa "Invitation to a Beheading" com a declaração da sentença de morte do herói, de acordo com o costume daquele mundo assombroso, com a precisão de um pesadelo, em um sussurro. O segundo parágrafo se inicia assim:
"Então nos aproximamos do fim. A mão direita, a parte ainda não provada do romance, que, durante a nossa deleitável leitura, sentimos levemente, testando de modo mecânico quanto ainda resta ler (e nossos dedos sempre contentes com a plácida e confiável espessura), de súbito, sem qualquer razão aparente, fica bastante escassa: com mais uns poucos minutos de leitura rápida, já estamos ladeira abaixo, ó horror."
Em Machado e Nabokov, a subversão e o aniquilamento das convenções indicam uma inteligência cética e independente que pode também ser direcionada aos desafios das convenções e pretensões extraliterárias. Ambos podem ser causticamente críticos e mordazes em sua ironia. Machado pode não ser exatamente o "pessimista rabugento" que Brás Cubas se autodenomina, mas permanece sempre alerta às ironias e imperfeições da vida por trás dos lugares-comuns e práticas aceitas. A visão que Nabokov tem da vida também pode parecer sombria e impiedosa.
Um crítico, reagindo ao seu primeiro grande romance russo, "The Defense", escreveu: "Que terrível, ver a vida como [Nabokov] a enxerga"; e no posfácio de seu primeiro grande romance em inglês, "Lolita", Nabokov conta sobre a preocupação de um amigo com o fato de ele viver "cercado de pessoas tão deprimentes".
CRUELDADE Tanto Machado como Nabokov detestavam a crueldade o bastante para representá-la em seu horror mais brutal, nas vivissecções apavorantes, primeiro de ratos, depois de prisioneiros e, em seguida, de filósofos no "Conto Alexandrino", de Machado de Assis, ou na apavorante tortura sem sentido, de mau gosto e agonizante do filho do herói no desfecho de "Bend Sinister", de Nabokov.
Tanto Machado como Nabokov podem basear sua ficção nas circunstâncias e pormenores de seus mundos, embora também possam passar a qualquer momento a um panorama distanciado da aparente solidez das situações de suas personagens. Machado escreve sobre a heroína de Quincas Borba:
"Sofia meteu a alma em um caixão de cedro, encerrou o de cedro no caixão de chumbo do dia, e deixou-se estar sinceramente defunta. Não sabia que os defuntos pensam, que um enxame de noções novas vem substituir as velhas, e que eles saem criticando o mundo como os espectadores saem do teatro criticando a peça e os atores."
O especialista em Nabokov Alfred Appel Jr., que se tornou amigo de seu ex-professor, contou a Nabokov que encenou um espetáculo de marionetes para seus filhos e capturou a expressão de horror e hilaridade em seus rostos quando, em meio ao clímax da história, ele derrubou o palco da encenação em que eles estavam tão absortos -uma mudança de perspectiva que ele achava semelhante à que os leitores enfrentavam nos textos de Nabokov. Nabokov lhe disse: "Você deve colocar isso em seu livro". [...]
Tanto Machado quanto Nabokov são capazes de retratar vividamente as deficiências humanas, a transitoriedade da vida humana e a pequenez de nosso mundo em uma perspectiva além da que a nossa imaginação humana pode prontamente adotar. Ambos tiveram uma independência intelectual que os fez resistir aos lugares-comuns de suas épocas, no entanto, mais que isso, eles fizeram avaliações diferentes quanto ao lugar definitivo da vida humana, embora muitas vezes tenham usado recursos semelhantes.
Machado, sem as esperanças metafísicas e o confiante maximalismo de Nabokov, viveu em um mundo mais sombrio, mas ambos defenderam valores como amor, generosidade, trabalho, diversão e arte, valores humanos comuns que ambos souberam transformar em obras de arte muito semelhantes e muito diferentes e de mestria incomum.

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