terça-feira, 31 de maio de 2011
O escritório do escritor
(...)
“O escritório do escritor é, ao contrário de todos os outros lugares de trabalho, local para o pleno exercício da alma humana, bem mais do que até mesmo as salinhas com divãs de psicanálise e locais reservados, nas igrejas católicas, para os tradicionais confessionários, onde estranhezas muitas também desfilam as suas fantasias. Porém, é no escritório do escritor que as fantasias humanas ganham corpo, voz e alma e se arquitetam em enredo para o entretenimento, mas também, e sobretudo, para a reflexão sobre o desafio de vivermos marcadamente sob a égide da transformação permanente que o tempo e a perda imprimem, indeterminadamente, sobre todos e tudo.
É no escritório do escritor que a palavra geme no prazer e na dor de gerar novos sentidos para a língua, produzindo outras linguagens, e é também lá, no escritório do escritor, que o homem descobre que o mundo e a vida são feitos de palavras e que essa matéria, a mais plástica das matérias do artifício humano, pode construir ou destruir mundos e vidas.
No escritório do escritor o homem é Deus e Diabo, e, no meio, a palavra.”
Ítalo Meneghetti (escritor e professor universitário)
“O escritório do escritor é, ao contrário de todos os outros lugares de trabalho, local para o pleno exercício da alma humana, bem mais do que até mesmo as salinhas com divãs de psicanálise e locais reservados, nas igrejas católicas, para os tradicionais confessionários, onde estranhezas muitas também desfilam as suas fantasias. Porém, é no escritório do escritor que as fantasias humanas ganham corpo, voz e alma e se arquitetam em enredo para o entretenimento, mas também, e sobretudo, para a reflexão sobre o desafio de vivermos marcadamente sob a égide da transformação permanente que o tempo e a perda imprimem, indeterminadamente, sobre todos e tudo.
É no escritório do escritor que a palavra geme no prazer e na dor de gerar novos sentidos para a língua, produzindo outras linguagens, e é também lá, no escritório do escritor, que o homem descobre que o mundo e a vida são feitos de palavras e que essa matéria, a mais plástica das matérias do artifício humano, pode construir ou destruir mundos e vidas.
No escritório do escritor o homem é Deus e Diabo, e, no meio, a palavra.”
Ítalo Meneghetti (escritor e professor universitário)
De José Castello
“(O poeta) não precisa da realidade à sua frente para escrever. Ao contrário: a proximidade excessiva (...) cega. (...) Um poeta que mereça esse nome não precisa de fatos. Precisa, sim, de ideias. É como se a pegada fosse, para o caçador de versos, mais importante que a fera. A matéria é, sim, um fundamento. Uma matriz a carimbar sombras de poemas. É dela que o poeta passa a arrancar aquilo que se recusa a aceitar da inspiração.”
sábado, 28 de maio de 2011
De Cecília Meireles
Romance LIII ou Das Palavras Aéreas
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
(...)
(In: Romanceiro da Inconfidência)
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
(...)
(In: Romanceiro da Inconfidência)
terça-feira, 24 de maio de 2011
De Alzira Freire
Das pedras em flor
Para Francisco
Crescem suspiros de angélica
sob um luar de marfim.
Da torre do campanário
espiam mochos sisudos
o silêncio da cidade
serena no seu dormir.
E o cheiro branco, narcótico,
crescendo junto com a lua,
vai formando espessa névoa,
cantante bruma gelada.
Vai entrando pelos sonhos
dos poetas que já dormem,
vai entrando pelos versos
daqueles que ainda velam
poemas por acabar.
E o bronze do campanário,
tonto de tanto luar,
canta as pedras, canta o rio,
canta a rua de sobrados,
canta o Penedo inteirinho
numa canção perfumada
de lento amadrugadar.
Alzira Freire: poetisa penedense, é autora dos livros Doce de vidro e De flor e vento plena.
Para Francisco
Crescem suspiros de angélica
sob um luar de marfim.
Da torre do campanário
espiam mochos sisudos
o silêncio da cidade
serena no seu dormir.
E o cheiro branco, narcótico,
crescendo junto com a lua,
vai formando espessa névoa,
cantante bruma gelada.
Vai entrando pelos sonhos
dos poetas que já dormem,
vai entrando pelos versos
daqueles que ainda velam
poemas por acabar.
E o bronze do campanário,
tonto de tanto luar,
canta as pedras, canta o rio,
canta a rua de sobrados,
canta o Penedo inteirinho
numa canção perfumada
de lento amadrugadar.
Alzira Freire: poetisa penedense, é autora dos livros Doce de vidro e De flor e vento plena.
domingo, 22 de maio de 2011
De José Neres
"Os poetas são os seres iluminados que se cansaram da formalidade das palavras e buscam (re)vesti-las de outras significações, que procuram no inusitado um fôlego novo para as palavras já desgastadas pelos séculos de uso burocrático. O poeta recria a seu bel-prazer o mundo já tão conhecido pelos outros homens que apenas veem o visível e que fecham os olhos para o que não podem (ou não querem) compreender com os sentidos não explorados pela emoção humana."
(In: Revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa)
(In: Revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa)
De Manoel de Barros
sexta-feira, 20 de maio de 2011
De Aurélio Buarque de Holanda
"Graciliano escreve como quem passa telegrama, pagando caro por palavra. Seu livro é excelentemente construído: nele nada se perde e nada falta."
Sobre Graciliano Ramos
"Nas horas vagas da madrugada, quando já fechada a loja de tecidos de que Graciliano tinha de cuidar (...), metodicamente alinhava cachaça, fumo, café, dicionário, tão importantes quanto a caneta-tinteiro e a resma inane de papel, e montava corpo sobre a palavra para não deixá-la esquivar."
(Por Julián Fuks - In: Revista EntreLivros, Ano 2, Nº 19)
(Por Julián Fuks - In: Revista EntreLivros, Ano 2, Nº 19)
De Rainer Maria Rilke
"Tira-me a luz dos olhos - continuarei a ver-te
Tapa-me os ouvidos - continuarei a ouvir-te
E, mesmo sem pés, posso caminhar para ti
E, mesmo sem boca, posso chamar por ti.
Arranca-me os braços, e tocar-te-ei com o meu coração
como se fora com as mãos...
Despedaça-me o coração - e o meu cérebro baterá
E, mesmo que faças do meu cérebro uma fogueira,
Continuarei a trazer-te no meu sangue..."
Tapa-me os ouvidos - continuarei a ouvir-te
E, mesmo sem pés, posso caminhar para ti
E, mesmo sem boca, posso chamar por ti.
Arranca-me os braços, e tocar-te-ei com o meu coração
como se fora com as mãos...
Despedaça-me o coração - e o meu cérebro baterá
E, mesmo que faças do meu cérebro uma fogueira,
Continuarei a trazer-te no meu sangue..."
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Os últimos dragões (como perder o tesão de escrever) -- Márcia Denser
Sou escritora profissional, 58 anos, 40 de carreira literária por vocação (inevitavelmente jornalista por deformação profissional) e estou prestes a desistir de tudo isso, isso que, para mim, era um prazer – embora não fosse absolutamente um prazer – antes um gosto de sal, um desejo de renunciar a toda escrita enquanto escrevo, porque já não escrevo quando penso em todas as circunstâncias adversas que tornaram a cidade um local profundamente insalubre (não bastassem as internas como o terror a inércia o terror o adiamento da verdadeira vida) para esta escriba, circunstâncias que me obrigam a esquivar-me, engendrar expedientes, me fazendo recuar, me acossar, restringir-me a este caderno e a este momento solitário em meu estúdio, quando subitamente percebo que é vital essa espécie de balanço e ajuste de contas, de levantamento das atuais circunstâncias sociais adversas, as mesmas que até há poucos anos me incitavam a prosseguir, mas que agora me remetem ao âmbito dum cerco que se instaura e te sitia, como um horizonte de cães, tornando insuportável simplesmente o ato de sair – sair no verdadeiro sentido da ação que ficou sem sentido, ação/contenção, ação/inação, ergo não age, não existe. Bom.
Simplesmente sair, sentar num bar, pedir um drinque, acender um cigarro, abrir este caderno, simplesmente começar a escrever e lá ser deixada em paz com meu drinque, meu cigarro, minhas palavras, minhas ideias, concentrada sobre este texto que começaria se estendendo, espiando o início da noite, alheia ao ruído, perfeitamente concentrada e feliz e perseguindo as evoluções silenciosas eriçando-se de negros caracteres na fímbria dessa tessitura febril. Mas todas essas circunstâncias foram estancando, minguando, secando o fluxo da consciência, porque o cigarro já não é possível, donde o drinque fica meio chocho e este caderno, esta caneta tão anacrônicos, clamando por um laptop, por enquanto fora de cogitação, até porque não posso me dar o luxo de perder ficção, foda-se o laptop, e logo eu, que gosto de beber meio além da conta e fumar compulsivamente, principalmente quando o trabalho deslancha, atenta unicamente a esta voz interior, o surdo ditado imperioso urdindo palavras, sentenças, períodos, determinando ritmo e andamento, acelerando vertiginosamente o sincopado, o contraponto da ação em direção ao seu destino, buscando o verbo que as leve e o diabo que as carregue.
Em linhas gerais, era disso que tratava meu mister de escritora, constatando desesperadamente que agora o mundo levanta muros, interdições e justo a mim, que me basta tão pouco – um bar, um drinque, um maço de cigarros, a cidade que anoitece, vozes inaudíveis, garçons, sombras esquecidas – aquele espetáculo de sombras passando ao nosso lado, porém vivendo num mundo paralelo – usando a metáfora de Conrad ao se referir às embarcações nativas ao cruzar as naus de Sua Majestade, só que, no meu caso, “do outro lado” estava eu: out and nowhere.
Simplesmente aparecer em lançamentos de livros, encontrar amigos que conversavam e fumavam e bebiam – que não pintavam a contragosto, por obrigação, mas como quem vai a uma festa – donde rosas, vinho, risos, êxtases, rupturas, controvérsias, imprevistos, dois ou três amores, saudades, ausências – e o monstro social de mil línguas flamejantes nos fazia renascer mais belos, brilhantes, engraçadíssimos, dada a inexistência de 1) seguranças; 2) café descafeinado; 3) cerveja sem álcool; 4) crachás; 5) metanfetaminas, garrafinhas d’água & iPod; 6) lanches e sucos naturais; 7) fones de ouvido; 8) telão; 9) atravessar incontáveis barreiras, avançar em meio a um dédalo de emoções inúteis; 10) desacontecimentos Inc.
Desacontecimentos lá fora, silêncio (desescritora) aqui dentro. Como naquele jazz, Out and nowhere.
Da minha laia encontro um amigo cartunista: desenha e solta e espalha imagens em mesas com toalhas de papel, esboços balbuciantes que vão se alastrando, esboçando caras, focinhos, narizes, plantas que viram animais que viram monstros que se petrificam ou explodem em híbridas trepadeiras oceânicas conforme seus humores & universo pessoal: não desenha para se comunicar, mas pra mergulhar, desaparecer, descer buscando restabelecer contato com aquele mundo mais perdido e mais profundo que persegue, interminavelmente oceânico. Ele também recusa, também nega qualquer aceitação das presentes cirunstâncias adversas e sem tesão, daí subverte as convenções de superfície forrando-as totalmente com respostas sem perguntas: Out and nowhere, fora e em nenhum lugar.
Assim como ele, me sinto tão longe e absurdamente tão próxima do mundo, dos outros, da vida, do ano de 2010, dum bar na Vila Madalena onde alguém senta ao meu lado e pergunta se estou escrevendo um novo livro e, nesse caso, por que à mão? Coisa mais antiga, compra um laptop, fone de ouvido, aí sim você fica muito mais out and nowhere (sic), mas não devia fumar, aliás aqui é proibido, saca, é proibido em todo lugar, se liga, apaga isso, não dá mole pro segurança, pede um suco de acerola, tigela de açaí, taí o convite do lançamento do meu novo livro, vai ser na FNAC, das 19h às 21h, vão ter umas leituras, conto contigo, convida aí teu amigo, coquetel, claro, chás e sucos bem naturebas, e vê se não atrasa porque fecha.
Ficamos olhando ele ir embora com aquelas roupinhas, aquele topete eriçado bico de pato de quem acabou de abrir uma franquia do FransCafé no Iraque, eu e meu amigo cartunista, ficamos só olhando, assim, sem palavras.
Nós, os últimos dragões.
Márcia Denser é paulistana. Publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.
Simplesmente sair, sentar num bar, pedir um drinque, acender um cigarro, abrir este caderno, simplesmente começar a escrever e lá ser deixada em paz com meu drinque, meu cigarro, minhas palavras, minhas ideias, concentrada sobre este texto que começaria se estendendo, espiando o início da noite, alheia ao ruído, perfeitamente concentrada e feliz e perseguindo as evoluções silenciosas eriçando-se de negros caracteres na fímbria dessa tessitura febril. Mas todas essas circunstâncias foram estancando, minguando, secando o fluxo da consciência, porque o cigarro já não é possível, donde o drinque fica meio chocho e este caderno, esta caneta tão anacrônicos, clamando por um laptop, por enquanto fora de cogitação, até porque não posso me dar o luxo de perder ficção, foda-se o laptop, e logo eu, que gosto de beber meio além da conta e fumar compulsivamente, principalmente quando o trabalho deslancha, atenta unicamente a esta voz interior, o surdo ditado imperioso urdindo palavras, sentenças, períodos, determinando ritmo e andamento, acelerando vertiginosamente o sincopado, o contraponto da ação em direção ao seu destino, buscando o verbo que as leve e o diabo que as carregue.
Em linhas gerais, era disso que tratava meu mister de escritora, constatando desesperadamente que agora o mundo levanta muros, interdições e justo a mim, que me basta tão pouco – um bar, um drinque, um maço de cigarros, a cidade que anoitece, vozes inaudíveis, garçons, sombras esquecidas – aquele espetáculo de sombras passando ao nosso lado, porém vivendo num mundo paralelo – usando a metáfora de Conrad ao se referir às embarcações nativas ao cruzar as naus de Sua Majestade, só que, no meu caso, “do outro lado” estava eu: out and nowhere.
Simplesmente aparecer em lançamentos de livros, encontrar amigos que conversavam e fumavam e bebiam – que não pintavam a contragosto, por obrigação, mas como quem vai a uma festa – donde rosas, vinho, risos, êxtases, rupturas, controvérsias, imprevistos, dois ou três amores, saudades, ausências – e o monstro social de mil línguas flamejantes nos fazia renascer mais belos, brilhantes, engraçadíssimos, dada a inexistência de 1) seguranças; 2) café descafeinado; 3) cerveja sem álcool; 4) crachás; 5) metanfetaminas, garrafinhas d’água & iPod; 6) lanches e sucos naturais; 7) fones de ouvido; 8) telão; 9) atravessar incontáveis barreiras, avançar em meio a um dédalo de emoções inúteis; 10) desacontecimentos Inc.
Desacontecimentos lá fora, silêncio (desescritora) aqui dentro. Como naquele jazz, Out and nowhere.
Da minha laia encontro um amigo cartunista: desenha e solta e espalha imagens em mesas com toalhas de papel, esboços balbuciantes que vão se alastrando, esboçando caras, focinhos, narizes, plantas que viram animais que viram monstros que se petrificam ou explodem em híbridas trepadeiras oceânicas conforme seus humores & universo pessoal: não desenha para se comunicar, mas pra mergulhar, desaparecer, descer buscando restabelecer contato com aquele mundo mais perdido e mais profundo que persegue, interminavelmente oceânico. Ele também recusa, também nega qualquer aceitação das presentes cirunstâncias adversas e sem tesão, daí subverte as convenções de superfície forrando-as totalmente com respostas sem perguntas: Out and nowhere, fora e em nenhum lugar.
Assim como ele, me sinto tão longe e absurdamente tão próxima do mundo, dos outros, da vida, do ano de 2010, dum bar na Vila Madalena onde alguém senta ao meu lado e pergunta se estou escrevendo um novo livro e, nesse caso, por que à mão? Coisa mais antiga, compra um laptop, fone de ouvido, aí sim você fica muito mais out and nowhere (sic), mas não devia fumar, aliás aqui é proibido, saca, é proibido em todo lugar, se liga, apaga isso, não dá mole pro segurança, pede um suco de acerola, tigela de açaí, taí o convite do lançamento do meu novo livro, vai ser na FNAC, das 19h às 21h, vão ter umas leituras, conto contigo, convida aí teu amigo, coquetel, claro, chás e sucos bem naturebas, e vê se não atrasa porque fecha.
Ficamos olhando ele ir embora com aquelas roupinhas, aquele topete eriçado bico de pato de quem acabou de abrir uma franquia do FransCafé no Iraque, eu e meu amigo cartunista, ficamos só olhando, assim, sem palavras.
Nós, os últimos dragões.
Márcia Denser é paulistana. Publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.
Pedro Pedreiro - Chico Buarque
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
(...)
Subiu a construção como se fosse sólido
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
(...)
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague(...)
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague.
Fotos: Arriete Vilela
segunda-feira, 16 de maio de 2011
Poema 33 - Arriete Vilela
Água da cacimba
no avental encardido da infância.
Revejo a avó
longínqua e triste:
miúda flor ressequindo-se
à beira do fogão a lenha;
miúda borboleta esgotando-se
no sopro à brasa do ferro de engomar;
miúda camponesa desdobrando-se
entre a cuscuzeira de barro
e as pontas da toalha da mesa,
onde assoa o nariz.
Miúda e bela estrela,
a avó,
mergulhada no abismo
do anonimato.
(In: Obra Poética Reunida)
no avental encardido da infância.
Revejo a avó
longínqua e triste:
miúda flor ressequindo-se
à beira do fogão a lenha;
miúda borboleta esgotando-se
no sopro à brasa do ferro de engomar;
miúda camponesa desdobrando-se
entre a cuscuzeira de barro
e as pontas da toalha da mesa,
onde assoa o nariz.
Miúda e bela estrela,
a avó,
mergulhada no abismo
do anonimato.
(In: Obra Poética Reunida)
sábado, 14 de maio de 2011
De Carlos Drummond de Andrade
De João Cabral de Melo Neto
quarta-feira, 11 de maio de 2011
O livro da solidão - Cecília Meireles
Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência às noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes —, mas obedecendo à lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E, sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência às noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes —, mas obedecendo à lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E, sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Assim te recordo, mãe... - Texto de Arriete Vilela
Recordo-te, mãe, em desassossegos de amor : teus olhos verdes – docemente compassivos quando postos nos filhos – atiçavam-se em iras de ciúme do único homem que o teu coração privilegiou.
Recordo-te, mãe, em desperdícios de afeto : teus olhos verdes – ferozmente indecifráveis quando postos sobre o teu tão humano e frágil amor – esgarçavam-se em desculpas, porque sabias, mãe, quanto teus filhos careciam do teu colo, e não o tinham, e careciam da tua paz, e não a tinhas, e careciam do teu boa-noite, do teu beijo leve no rosto, do teu afago, mãe, mas vivias entre ventos tormentosos que te lançavam contra os rochedos pontiagudos dos sentimentos ameaçadores, mesquinhos, imaturos.
Recordo-te, mãe, com uma dor danada na alma, sobretudo hoje: não te amaste a ti mesma como devias, não preservaste a bela chama que ardia no teu peito de mulher apaixonadamente ardente, e permitiste que a tirania amorosa conduzisse para mares tempestuosos a tua grande capacidade de doação e de alegria.
Recordo-te, mãe, como a pessoa mais íntegra da minha vida. Não soubeste, contudo, polir as arestas do teu coração : tua franqueza e tua autenticidade desconcertavam as pessoas, e eu mesma, muitas vezes, não soube lidar com o verde dos teus olhos : uma força que incidia diretamente nas fragilidades, como um raio de sol forte sobre as asas da pequena borboleta, no azul dos dias.
Recordo-te, mãe, para além das banalidades da vida : és hoje um brilho que se imprime em mim e me faz lutar pela difícil vivência harmoniosa do amor.
Recordo-te, mãe, como o colo por que anseio quando a poesia vem aninhar-se junto a mim, e eu careço apenas de que me entoes, mesmo tardiamente, uma dessas delicadas cantigas que trazem os melhores sonhos em doces e infantis palavras...
Recordo-te, mãe, em desperdícios de afeto : teus olhos verdes – ferozmente indecifráveis quando postos sobre o teu tão humano e frágil amor – esgarçavam-se em desculpas, porque sabias, mãe, quanto teus filhos careciam do teu colo, e não o tinham, e careciam da tua paz, e não a tinhas, e careciam do teu boa-noite, do teu beijo leve no rosto, do teu afago, mãe, mas vivias entre ventos tormentosos que te lançavam contra os rochedos pontiagudos dos sentimentos ameaçadores, mesquinhos, imaturos.
Recordo-te, mãe, com uma dor danada na alma, sobretudo hoje: não te amaste a ti mesma como devias, não preservaste a bela chama que ardia no teu peito de mulher apaixonadamente ardente, e permitiste que a tirania amorosa conduzisse para mares tempestuosos a tua grande capacidade de doação e de alegria.
Recordo-te, mãe, como a pessoa mais íntegra da minha vida. Não soubeste, contudo, polir as arestas do teu coração : tua franqueza e tua autenticidade desconcertavam as pessoas, e eu mesma, muitas vezes, não soube lidar com o verde dos teus olhos : uma força que incidia diretamente nas fragilidades, como um raio de sol forte sobre as asas da pequena borboleta, no azul dos dias.
Recordo-te, mãe, para além das banalidades da vida : és hoje um brilho que se imprime em mim e me faz lutar pela difícil vivência harmoniosa do amor.
Recordo-te, mãe, como o colo por que anseio quando a poesia vem aninhar-se junto a mim, e eu careço apenas de que me entoes, mesmo tardiamente, uma dessas delicadas cantigas que trazem os melhores sonhos em doces e infantis palavras...
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Mãe e Amor - Texto de Arriete Vilela
Falar em Mãe significa falar em Amor, porque ambos são absolutamente compatíveis e se celebram numa reciprocidade única, singular: o Amor entretece a Mãe, pois a precede e a ilumina, mas é ela quem o perpetua e lhe dá ecos infinitos de generosidade, de esperança, de ternura e de liberdade.
Mãe é sinônimo de Amor intenso, sublimado, que quer sempre o bem, que sabe compreender e perdoar. Amor para a vida inteira.
Mãe e Amor entrelaçam-se, completam-se, nutrem-se, solidarizam-se, fortalecem-se, transcendem-se.
Talvez ninguém vivencie melhor o verdadeiro sentido do Amor do que uma Mãe, pois ela o acolhe e o preserva na própria alma, imortalizando-o em outros corações, em outras vidas, em outros destinos.
Mãe é poesia, delicadeza, renúncia, compaixão, experiência, sensibilidade.
E somente no coração de uma Mãe, o Amor de fato triunfa.
Mãe é sinônimo de Amor intenso, sublimado, que quer sempre o bem, que sabe compreender e perdoar. Amor para a vida inteira.
Mãe e Amor entrelaçam-se, completam-se, nutrem-se, solidarizam-se, fortalecem-se, transcendem-se.
Talvez ninguém vivencie melhor o verdadeiro sentido do Amor do que uma Mãe, pois ela o acolhe e o preserva na própria alma, imortalizando-o em outros corações, em outras vidas, em outros destinos.
Mãe é poesia, delicadeza, renúncia, compaixão, experiência, sensibilidade.
E somente no coração de uma Mãe, o Amor de fato triunfa.
De Vinicius de Moraes
Quem passou por essa vida e não viveu
Como dizia o poeta
Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não
Como dizia o poeta
Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não
domingo, 1 de maio de 2011
Sobre Fantasia e Avesso, de Arriete Vilela
"O grande herói do texto de Arriete, que parece ser o amor, é, na verdade, a palavra: a fantasia e o seu avesso entregam-se, em todas as páginas, a uma luta de vaivéns, avanços e recuos. Todo o texto é a discussão acerca da palavra poética; pretextando falar, o texto fala de si mesmo - circular e autocentrado -, numa metalinguagem que procura disfarçar-se."
Prof. Dr. Roberto Sarmento Lima (UFAL)
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