Cartas a um jovem escritor é um roteiro para candidatos a escritor. Uma espécie de manual. Mas, antes que você, leitor, interrompa a leitura desse comentário sob o pretexto de que não pretende tornar-se escritor, aviso: o livro é mais do que isso.
Ele pertence a uma série que contém títulos como Cartas a um jovem terapeuta e Cartas a um jovem publicitário. Ou seja, livros voltados a públicos definidos. Não é o caso dessas Cartas a um jovem escritor (que, no original, são endereçadas aos jovens romancistas). E por vários motivos. Primeiro, e óbvio, porque todos sabem que terapeutas e publicitários não surgem da ocasional vontade do sujeito. Dependem de anos de preparação e aprendizado formal de teorias, procedimentos e técnicas. Já um escritor, acredita-se, pode surgir do nada. É mentira, mas quase todo mundo conhece algum sujeito que, num belo dia, se pôs a escrever e acabou por cometer algum texto literário, para dissabor dos amigos que tiveram de lê-lo, mas que nem por isso deixaram de acreditar que escrever é “dom” ou qualquer outro mito romântico vulgarizado.
Segundo, porque quem escreve as cartas é um romancista fabuloso, talvez o melhor da América Latina: Mario Vargas Llosa. Terceiro, e mais importante: porque as cartas, a bem da verdade, não se destinam a candidatos a romancistas – que, felizmente, não são tantos – mas a leitores que têm interesse em saber um pouco mais sobre o processo de criação dos livros que lêem. Leitores que percebem que uma leitura começa antes da abertura do livro e termina depois, bem depois, de descobrir o desfecho da trama.
São onze cartas, acrescidas de uma breve décima-segunda, todas endereçadas a um suposto correspondente, que, em suas respostas imaginárias, perguntaria a Vargas Llosa sobre elementos centrais da narrativa. Essas perguntas permitem que o peruano aborde aspectos ligados respectivamente: à vocação literária, aos temas de um romancista, às formas do romance e seu poder de persuasão, ao estilo, ao narrador e ao espaço, ao tempo, aos níveis (e desníveis) entre ficção e realidade, às variações ocorridas no desenvolvimento narrativo, às diversas histórias contidas num mesmo romance, aos silêncios (ou não-ditos) na escritura, às articulações entre as várias partes de um texto e a seu efeito sinfônico. Na carta número doze, Vargas Llosa simplesmente sugere ao destinatário que ignore tudo que lhe ensinou e se ponha logo a escrever.
Mas você, leitor, não deve ignorar. Porque o livro é um excelente exercício de análise literária. Para identificar e exemplificar as onze lições, decompõem-se livros e autores – de Faulkner a García Márquez, de Céline a Carpentier, de Borges a Robbe-Grillet, de Flaubert a Hemingway . Acompanhar a leitura que Vargas Llosa desenvolve é, só por si, um prazer e um aprendizado. Afinal de contas – e essa talvez seja a principal lição contida nas cartas – só escreve quem lê. E lê tanto melhor quem procura perceber a arquitetura do texto em suas minúcias, sobretudo quando a obra elide seu movimento de construção, de tão sofisticado e preciso que ele é.
São especialmente importantes as reflexões de Vargas Llosa sobre a complexa – e tantas vezes banalizada – relação entre ficção e realidade ou entre ficção e história, algo que já apareceu em seus outros livros de crítica literária e, em especial, no ótimo A verdade das mentiras. É também curioso perceber como o que aparece nas Cartas de forma genérica ou como fruto de leituras ecoa em sua ficção. Inclusive a coincidência das publicações no Brasil desse volume de cartas (a edição original é de 1997) e do recente romance Travessuras da menina má (...) facilita a comparação e nos faz perceber a projeção e a expressão da boa leitura na escritura. Mais do que isso, nos traz a perspectiva de ler, num espaço muito curto de tempo, dois livros de Vargas Llosa, o que é um privilégio.
E assim podemos descobrir que um escritor não nasce com qualquer “dom”, nem desponta por obra e graça do Espírito Santo. Precisa de anos de preparação e aprendizado formal de teorias, procedimentos e técnicas. Sem contar as infinitas leituras. Igual a um terapeuta ou a um publicitário. Ou mais complicado.
(In: Paisagens da Crítica - blog de Júlio Pimentel Pinto)
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